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Por dentro da Engesa-Engenheiros Especializados, 1974–1990: Armas, negócios e inserção internacional de uma empresa brasileira

Published online by Cambridge University Press:  07 November 2022

Carlos Federico Domínguez Avila*
Affiliation:
Universidade de Brasília, Brasília, e Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Resumo

O artigo examina a ascensão e a queda da empresa Engesa-Engenheiros Especializados, especialmente entre 1974 e 1990. O artigo é resultado de pesquisa com fontes documentais recentemente desclassificadas pelo Arquivo Nacional. A documentação consultada sugere que, na fase de ascensão, a Engesa foi impulsionada por uma eficiente vinculação entre indústria de defesa, exportação de armamento e política externa brasileira, principalmente durante os governos burocrático-autoritários de Ernesto Geisel e João Figueiredo. Entretanto, fragilidades financeiras e administrativas, junto a uma infrutuosa e dispendiosa tentativa de salto tecnológico, acabaram colocando a empresa em uma situação insustentável, conduzindo finalmente à sua queda e falência no início da década de 1990. A experiência da Engesa constitui um exemplo significativo nas pesquisas sobre inovação tecnológica, estudos estratégicos e relações internacionais.

Abstract

Abstract

The article examines the rise and fall of the firm Engesa-Engenheiros Especializados, especially between 1974 and 1990. The article is the result of research with documentary sources recently declassified by the National Archives. The consulted documentation suggests that, in its ascendant phase, Engesa was driven by an efficient link between the defense industry, arms exports, and Brazilian foreign policy, mainly during the bureaucratic-authoritarian governments of Ernesto Geisel and João Figueiredo. However, financial and administrative weaknesses, along with an unsuccessful and costly attempt to make a technological leap, put the firm in an unsustainable situation, finally leading to its fall and bankruptcy in the early 1990s. Engesa’s experience is a paradigmatic example in studies of technological innovation, strategic research, and international relations.

Type
Puzzling Issues in Economics and Political Economy
Creative Commons
Creative Common License - CCCreative Common License - BY
This is an Open Access article, distributed under the terms of the Creative Commons Attribution licence (http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/), which permits unrestricted re-use, distribution and reproduction, provided the original article is properly cited.
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© The Author(s), 2022. Published by Cambridge University Press on behalf of the Latin American Studies Association

Em 12 de janeiro de 1981, o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro encaminhou ao general Danilo Venturini, então secretário geral do Conselho de Segurança Nacional, um aviso procurando interceder em favor de um requerimento burocrático da diretoria da Engesa-Engenheiros Especializados. Fundamentalmente, os diretivos da Engesa procuravam garantir o direito a fruição de certos incentivos fiscais vinculados à exportação de bens e serviços, sobretudo a partir do cumprimento de metas de investimento, de produção e de vendas ao exterior. O assunto era importante para ambas as autoridades pelos seus eventuais desdobramentos em termos da articulação entre indústria de defesa, exportação de armamento e política externa brasileira. Em última instância, tratava-se do prestígio, da credibilidade e da segurança nacional brasileira. Todavia, em ausência de uma rápida e decisiva ação governamental, particularmente da área econômica do governo de Brasília, alertou-se sobre uma crescente ansiedade na bolsa de valores e no sistema financeiro, bem como uma possível falência da própria empresa. Acontece que a referida companhia contava com o favor desses incentivos fiscais para evitar o pagamento de impostos e pesadas multas da Receita Federal, bem como conseguir fechar seu balanço patrimonial anual de forma positiva.

Segundo o aviso de Guerreiro, “À ENGESA deve, indubitavelmente, ser creditada uma grande parte do prestígio angariado pelo Brasil como fornecedor de material de emprego militar no mercado internacional.”Footnote 1 O chanceler brasileiro ponderou que, entre 1974 e 1981, a empresa tinha conseguido vender mais de 1.300 viaturas militares em numerosos países. Também, que negociações em andamento representariam mais de US$140 milhões de dólares. E que um programa decenal de exportações da empresa brasileira projetava vendas de US$1,0 bilhão. Todavia, segundo o ministro brasileiro, tanto o alto padrão de qualidade, quanto o desempenho dos produtos da Engesa —basicamente veículos blindados EE-9 Cascavel e EE-11 Urutu, bem como caminhões todo-terreno—, era “inquestionável”, e tinham sido reconhecidos por numerosos usuários e pela imprensa especializada.

Nesse mesmo documento desclassificado, Guerreiro sublinhou que os importadores dos bens e serviços da Engesa “contam com o apoio das autoridades brasileiras para a manutenção dos fornecimentos dos veículos, sua munição e peças de reposição”. Por via de consequência, para o chanceler brasileiro era “motivo de preocupação a possibilidade da falência da ENGESA, pelo que pode representar a repercussão, junto aos clientes, do fato de o Governo não ter, de algum modo, evitado que a empresa descontinuasse sua produção.” Em termos operativos, Ramiro Saraiva Guerreiro tinha bem fundamentado temor acerca de “inevitáveis prejuízos para a credibilidade da indústria brasileira, em especial de material bélico.” Destarte, o diplomata concluiu seu arrazoado nos seguintes termos: “Embora ainda modesta, a posição brasileira entre os produtores de material bélico foi duramente conquistada e suas perspectivas são as mais encorajadoras. Nessas condições, ao comunicar a Vossa Excelência o ponto de vista do Itamaraty sobre o assunto, estou seguro que será possível às autoridades responsáveis pelo exame dos aspectos substantivos da matéria, a diligência necessária para que sejam superadas, com toda urgência, as graves dificuldades enfrentadas pela ENGESA”.

Munido com o endosso do chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro, o general Danilo Venturini encaminhou, no dia seguinte, 13 de janeiro de 1981, um ofício ao ministro de Indústria e Comércio, engenheiro João Camilo Penna, com solicitação para examinar a reivindicação da Engesa relacionada ao usufruto dos benefícios fiscais às exportações. Na opinião de Venturini o assunto era urgente, porque em ausência dos referidos benefícios fiscais a Engesa poderia evoluir “até um processo de dissolução falimentar da empresa”. Nessa hipótese, “todo o esforço nacional no campo da produção e exportação de material bélico ficaria comprometido.”Footnote 2

Apenas dois dias depois, em 15 de janeiro de 1981, o ministro Penna, junto com seus colegas da Fazenda e da Secretaria de Planejamento da Presidência da República, Ernane Galvêas e Antônio Delfim Neto, respectivamente, emitiram Portaria conjunta, concedendo à Engesa o vital Termo de Aprovação de Programa Especial de Exportação. O referido documento reconheceu o direito da Engesa à fruição de certos benefícios fiscais concedidos em 1977, e que deveriam continuar vigentes nos meses subsequentes.Footnote 3

Cumpre acrescentar que a origem destas gestões no mais alto nível do governo burocrático-autoritário comandado pelo general João Baptista de Oliveira Figueiredo em favor da Engesa estava em um pedido urgente de “apoio e compreensão” às equipes militares, diplomáticas e econômicas do regime, datado em 9 de janeiro de 1981. Na oportunidade, os executivos da Engesa-Engenheiros Especializados expressaram temor por um “completo estrangulamento financeiro” e por um “previsível processo falimentar […] em questão de horas”. Essa hipótese poderia vir a acarretar graves prejuízos “nas relações entre o Brasil e aqueles países que confiaram na qualidade dos bens e serviços que a empresa se comprometeu a fornecer”, além de problemas de ordem social —desemprego—, e de inconvenientes com empresas multinacionais e da comunidade financeira. Todavia, os referidos executivos alertaram que, em última instância, seria “fácil verificar que a possibilidade de falência da Engesa certamente importará na interrupção por prazo, previsivelmente longo, da tentativa de tornar o Brasil independente no campo da produção de material bélico.”Footnote 4

O caso supracitado, que mobilizou autoridades do primeiro escalão do governo de Brasília, bem como as referências indiretas a atores privados nacionais e estrangeiros, com intuito de salvar a Engesa de uma eventual falência, tornou-se em uma das regularidades presentes na documentação consultada, entre 1974 e 1990. Com efeito, essa minicrise de janeiro de 1981 ilustra bem o padrão de relacionamento entre o empresariado e as áreas militar, econômica e civil do governo de Figueiredo (Silva Reference Silva2021). Ela também reflete as percepções e interpretações de atores com vínculos e interesses no devir de uma das mais importantes e até paradigmáticas empresas da indústria de defesa, bem como suas correlações com a exportação de armamento e a política externa brasileira (Bello, Figueiredo e Almeida Reference Bello, Figueiredo and Almeida2020). Desse modo, infere-se que, em última instância, tratava-se de parcerias públicas (militares e civis) e privadas, que influíam poderosamente na formulação e implementação de políticas públicas setoriais, inclusive no campo da política externa brasileira. Eis uma primeira aproximação a uma temática complexa, multifacetada e relevante sob o ponto de vista dos estudos e pesquisas em história, inovação tecnológica, segurança internacional, Guerra Fria Latino-americana e política externa brasileira.

Metodologicamente, o presente artigo é resultado de pesquisa documental no Arquivo Nacional, especificamente na Coordenação Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal-Coreg. Foi consultada uma significativa quantidade de documentos que formam parte do denominado Acervo da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, doravante SG/CSN. Essa coleção de documentos é importante já que concentra avisos, ofícios, memorandos e telegramas redigidos por numerosas entidades —públicas e privadas— envolvidos no processo de regulação da indústria de defesa, da exportação de armas e da política externa brasileira.

De fato, parece pertinente destacar que o referido acervo inclui documentação de ministérios militares, da equipe econômica e do Ministério das Relações Exteriores. Igualmente, o acervo contém algumas referências diretas e indiretas de atores privados —isto é, textos redigidos pela própria Engesa, bem como de bancos e empresas ligadas ao comércio exterior—, além de mensagens escritas de governos estrangeiros com vínculos e interesses na temática. Outrossim, a documentação em apreço foi objeto de persistente crítica interna e externa. Ela está à disposição de outros pesquisadores interessados na temática e, por via de consequência, poderá ser replicada e convalidada.Footnote 5

A pergunta-orientadora deste artigo é a seguinte: como e por que a Engesa-Engenheiros Especializados teve, entre 1974 e 1990, uma ascensão e uma queda tão rápida e significativa, especialmente sob as perspectivas da gestão financeiro-administrativa, da inovação tecnológica e da inserção internacional? A hipótese de trabalho sugere que a ascensão da Engesa teria sido impulsionada por uma eficiente vinculação entre indústria de defesa, exportação de armamento e política externa brasileira; entretanto, a queda dessa icônica empresa brasileira poderia ser atribuída a fragilidades, vulnerabilidades e limitações no campo da gestão financeira, patrimonial e administrativa, bem como a uma audaciosa, arriscada e finalmente infrutuosa tentativa de salto tecnológico diretamente correlacionada ao projeto do tanque EE-T1 Osório.

A Engesa e o “supermercado” das armas brasileiras: Diversificação das exportações e política externa

A Engesa foi uma empresa brasileira fundada em 1958 e que acabou tendo decretada sua falência em outubro de 1993. Durante a maior parte do período foi administrada pelo engenheiro José Luiz Whitaker Ribeiro e familiares. Inicialmente a empresa dedicou-se a prestar serviços para a indústria petroleira. E a partir de 1970, atendendo a propostas e contratos do alto comando do Exército brasileiro, ingressou no campo da indústria de defesa. Seus mais importantes projetos da época foram as viaturas blindadas EE-9 Cascavel e EE-11 Urutu, bem como caminhões todo-terreno. Além de fornecer as referidas viaturas para as forças armadas brasileiras, a Engesa teve a virtude —e a necessidade— de procurar penetrar no mercado internacional. E nesse esforço conseguiu um resultado sumamente significativo, particularmente em países do Oriente Médio, com destaque para as importações do Iraque, Líbia e Egito. Observe-se que a delimitação temporal deste estudo de caso corresponde, precisamente, ao período entre 1974 e 1990, quando a Engesa conseguiu afirmar-se como uma das principais exportadoras de material de emprego militar, e mais especificamente de grandes sistemas de armas (Hartung Reference Hartung and Williams2012; Strachman e Degl’lesposti Reference Strachman2010).Footnote 6

O processo de internacionalização da Engesa coincidiu com os esforços do regime burocrático-autoritário encabeçado pelos presidentes-generais Emílio G. Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo para regular e aprimorar a vinculação entre a indústria de defesa, a exportação de armas e a política externa (Vizentini Reference Vizentini1998). Acontece que, para crescer, se desenvolver e prosperar, tornou-se inequívoco que a indústria de defesa teria que ir além do então restrito mercado nacional —eis a origem da parábola do “supermercado” das armas de fabricação brasileira (Klare Reference Klare1985)—. Todavia, a alternativa de afiançar —e até de priorizar— a sua inserção no mercado internacional implicava para a Engesa, dentre outras questões, a aceitação explícita de ajustar sua estratégia de promoção comercial aos parâmetros da assim chamada Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar-Pnemem, vigente a partir de 1974 (Domínguez Reference Domínguez2022a).

Resumidamente, a Pnemem era um mecanismo de controle e regulação governamental administrado conjuntamente por dois atores institucionais principais: a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional e o Ministério das Relações Exteriores; além de outros atores secundários com vínculos e interesses na questão. Ambas as instituições assessoravam à Presidência da República no processo de tomada de decisão, e eram fundamentais na autorização —ou não— de eventuais exportações, dependendo das especificidades e peculiaridades dos interessados (Magalhães Reference Magalhães2016). Outrossim, a Pnemem teve cinco objetivos fundamentais, todos eles correlacionados às atividades de inserção internacional da Engesa e, consequentemente, de interesse para os fins deste estudo de caso, a saber:

  • Fortalecer a posição internacional do Brasil, pelo desenvolvimento da capacidade de suprir produtos do mais alto valor estratégico.

  • Facultar à indústria militar nacional acesso a maior mercado, incentivando e possibilitando aumento da escala de produção interna e aplicação de novos investimentos no setor.

  • Estimular o desenvolvimento da indústria privada e da pesquisa tecnológica do material de emprego militar, bem como o aperfeiçoamento do seu padrão de qualidade.

  • Fortalecer, indiretamente, o poder militar, inclusive pela ampliação da capacidade de mobilização industrial.

  • Contribuir positivamente para o Balanço de Pagamentos, pelo aumento da receita de exportação e redução das despesas decorrente da substituição de importações.Footnote 7

Nesse marco institucional da segunda metade da década de 1970, os executivos da Engesa foram bem sucedidos no processo de sensibilizar as autoridades militares, diplomáticas e tecnocráticas, bem como ao sistema financeiro, sobre a potencialidade, versatilidade e pertinência dessas atividades empresariais e da indústria de defesa, em geral. No contexto econômico do denominado II Plano Nacional de Desenvolvimento, formulado e implementado pelo governo de Geisel entre 1975 e 1979, as atividades da Engesa eram relevantes e significativas (Schneider Reference Schneider2013). Tudo isso sem esquecer-se do persistente apelo aos conceitos de segurança e desenvolvimento nacional, independência, soberania, autonomia, nacionalismo, economia de mercado, e produção interna de bens para garantir a defesa.

Em compensação aos esforços dos executivos da Engesa orientados a penetrar e se afirmar no competitivo mercado internacional de grandes sistemas de armas, o governo brasileiro ofereceu incentivos fiscais e monetários para as exportações —eis o caso das maxidesvalorizações para elevar a competitividade externa dos bens exportados—, linhas de crédito para os clientes —isto é, para governos estrangeiros interessados na importação de material de emprego militar de fabricação brasileira—, facilidades logísticas, apoio político-diplomático, e certa tolerância em relação às práticas pouco transparentes predominantes nesse setor. Todavia, no contexto de um processo de aprendizado institucional, autoridades governamentais brasileiras se manifestaram e disponibilizaram favoravelmente a conhecer e examinar as ideias e propostas do empresariado vinculado ao setor da indústria de defesa, procurando avançar no estabelecimento de um padrão de relacionamento governo-empresa e um ambiente de negócios mais oportuno e consequente (Conca Reference Conca1997).

Com relação aos esforços para criar um padrão de relacionamento governo-empresariado e um ambiente de negócios mais oportuno, consequente e favorável à vinculação entre indústria de defesa, exportação de armamento e política externa brasileira, é pertinente examinar as ideias, propostas e interpretações do próprio engenheiro José Luiz Whitaker Ribeiro. Assim sendo, em fevereiro de 1977, o diretor-presidente da Engesa foi convidado a transmitir ao governo de Brasília suas percepções, visões e projeções em relação à inserção internacional de sua empresa e da indústria de defesa, bem como alguns aspectos problemáticos da política de exportações brasileira durante o governo de Ernesto Geisel.

Para os fins do presente estudo de caso cumpre constatar que o referido executivo ponderasse, por exemplo, o seguinte: “é hoje a nossa Engesa uma das maiores exportadoras de manufaturados do Brasil, tendo partido sozinha em busca de mercados novos para produtos que ela própria desenvolveu e em concorrência com conhecidos fornecedores de países tradicionalmente industrializados.”Footnote 8 Ao comparar as práticas e políticas de inserção e comércio utilizadas pelo Brasil com o modus operandi dos tradicionais concorrentes no mercado internacional de armas —especialmente dos estadunidenses, japoneses e alemães (Pierre Reference Pierre1982; Hartung Reference Hartung and Williams2012)—, o executivo centrou suas reflexões em cinco áreas temáticas de particular interesse: a concentração de esforços do empresariado, a responsabilidade do governo, a realidade da taxa cambial, os transportes, e a regularidade de fornecimento. Ainda que por razões de espaço não seja possível realizar uma análise aprofundada do assunto, é relevante destacar que o engenheiro Whitaker Ribeiro propugnava pela necessidade de uma melhor regulação governamental. Com efeito, após observar a existência de práticas mercantilistas nos principais fornecedores de armas, bem como elucubrar acerca de alguns casos de virtual concorrência predatória entre empresas brasileiras interessadas simultaneamente em determinados projetos de exportação de bens e serviços, o interlocutor ponderou, por exemplo, o seguinte:

Parece ser portanto absolutamente necessário que o governo assuma corajosamente a responsabilidade de coordenação, organização, seleção das companhias exportadoras e suas áreas de ação através de órgão extremamente desburocratizado, que tenha imediato e livre acesso aos outros ministérios, para então e só então sermos realmente competitivos. A função do governo seria então a de controlar, selecionar, disciplinar, orientar, financiar e proteger as companhias produtoras (inclusive de serviços). Essas por sua vez, por estarem lidando com seus próprios produtos o fariam eficientemente e com conhecimento de causa, a um custo muito menor por já disporem inclusive de elementos especializados treinados nas suas linhas.Footnote 9

As observações e interpretações do diretor-presidente da Engesa endereçadas a interlocutores do regime burocrático-autoritário encabeçado pelo general Ernesto Geisel são importantes e significativas. Evidentemente, tratava-se de críticas construtivas formuladas por um admirador da assim chamada “revolução” de 1964 (Pagliarini Reference Pagliarini2017; Messias da Costa Reference Messias da Costa2021). Acontece que para uma empresa com atividades na indústria de defesa e claramente envolvida em uma intensa inserção internacional, a política brasileira de comércio exterior era assunto sensível e polémico. Daí as persistentes críticas dos executivos da Engesa à taxa cambial de compra. Segundo Ribeiro, a referida taxa cambial de compra era “artificial” e afetava gravemente a todas as empresas exportadoras brasileiras, situação que se agravou ainda mais ao longo da década de 1980.

Chama também a atenção a recomendação de uma coordenação governamental para evitar uma concorrência predatória entre as próprias empresas brasileiras da indústria de defesa. Em retrospectiva, tal objetivo de coordenação governamental foi efetivamente atingido, pelo menos até a crise que assolou a base industrial de defesa brasileira, entre 1988 e 1993, conforme é discutido em partes subsequentes deste estudo. Mesmo assim, não faltaram críticas às demoras burocráticas para confirmar a autorização de contratos com clientes estrangeiros, bem como o tocante à política tributária, creditícia e de apoio na promoção comercial. Nesse sentido, José Luiz Whitaker Ribeiro também observou, no documento em referência, o seguinte “É impressionante observar o apoio recebido dos seus governos pelos nossos concorrentes, resultando na alta confiabilidade do material, de suas entregas e no preço razoável de seus produtos.” Em suma, é claro que o diretor-presidente da Engesa estava ciente que o sistema internacional oferecia oportunidades, constrangimentos e desafios econômico-administrativos e políticos às empresas exportadoras, aos seus governos, e às sociedades.

Entre 1977 e 1982, a Engesa teve um excelente desempenho no esforço de inserção internacional. Mais de 1.300 viaturas foram exportadas, com um valor de mais de US$300 milhões de dólares. Daí que a referida empresa se candidatasse ao título de maior exportadora brasileira de material de emprego militar, superando as realizações igualmente impressionantes de alguns outros conglomerados locais, como a Avibras Indústria Aeroespacial ou a Empresa Brasileira de Aeronáutica-Embraer (Moraes Reference Moraes2012). Assim sendo, na documentação consultada é possível verificar que aproximadamente um terço dos requerimentos e dos procedimentos de tomada de decisão considerados pelos atores institucionais encarregados da gestão da Pnemem correspondia a solicitações de autorização emanados ou correlacionados à Engesa.

Efetivamente, as fontes consultadas são bastante prolixas e fecundas no tocante aos processos de tomada de decisão vinculados às atividades da Engesa dentro e fora do Brasil, especialmente no concernente à promoção comercial, à apresentação de seus produtos em diferentes países do mundo e à negociação de contratos, previa autorização das mais altas autoridades do governo de Brasília. Sabe-se que, entre 1974 e 1980, os primeiros importadores de material de emprego militar fabricado pela Engesa foram Líbia (400 EE-9 Cascavel), Iraque (130 EE-9 Cascavel e 37 EE-11 Urutu), Chile (140 EE-9 Cascavel e 16 EE-11 Urutu), e Bolívia (50 EE-9 Cascavel e 585 caminhões todo-terreno EE-15 e EE-25). Outros clientes que, nesse período, contrataram a importação de bens da Engesa foram Gabão, Uruguai, Venezuela, Argélia, Equador, Colômbia, Arábia Saudita, Costa de Marfim, Chipre, e Peru.Footnote 10

No início da década de 1980 os executivos da Engesa pareciam ter boas expectativas de inserção internacional no competitivo mercado internacional de grandes sistemas de armas. Quer dizer, um mercado tradicionalmente dominado por companhias construtoras sediadas em potências como os Estados Unidos, a União Soviética, França, Reino Unido, Itália, Alemanha e Bélgica (Sipri 2022). Portanto, o Brasil começou a ser considerado como um newcomer pela imprensa especializada e por pesquisadores da dinâmica da política internacional de transferência de armas (Proença Reference Proença1994).Footnote 11

Nessa mesma linha, consta que, em novembro de 1980, a Engesa trabalhava em um Programa Decenal de Exportação, a ser cumprido entre 1981 e 1990, com vendas médias brutas anuais previstas acima dos US$100 milhões de dólares.Footnote 12 O plano de negócios da empresa fundamentava-se em projeções sumamente otimistas. Possivelmente o início da longa, sangrenta e destrutiva guerra entre o Iraque e Irã, travada entre 1980 e 1988, contribuiu a reforçar as expectativas dos executivos da Engesa, já que o regime de Saddam Hussein tinha demostrado muito interesse na indústria de defesa brasileira, em geral, e nas EE-9 Cascavel e EE-11 Urutu, em particular (Domínguez Reference Domínguez2022b).

Apesar disso, é surpreendente constatar que a documentação consultada também aponta, de forma persistente, uma série de fragilidades contábeis, comerciais, administrativas e econômico-financeiras. Dentre tais fragilidades identificadas por autoridades encarregadas da regulação, controle e fiscalização setorial destacou-se um estrutural problema de capitalização, bem como insuficiente capital de giro e um crescente endividamento da Engesa. Sob um olhar estritamente contábil, o acervo da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional oferece uma impressionante massa de dados e de análises prospectivas. Em geral, essas análises sugeriam certa preocupação com a evolução patrimonial de uma empresa recordista em exportações de material de emprego militar.

Em julho de 1981, isto é, poucos meses após a minicrise assinalada na introdução deste estudo de caso, uma detalhada análise preparada pela Agência Central do Serviço Nacional de Informações-SNI, após avaliar o devir patrimonial da Engesa, concluía, por exemplo, no seguinte: “a empresa encontra-se em situação difícil, evidenciando a necessidade de urgentes medidas saneadoras no campo financeiro, à par de uma reformulação na conduta de seus interesses administrativos.”Footnote 13 Para os autores do relatório, um dos principais problemas da Engesa até o momento era sua dependência de capital de terceiros para operar. Constatação que, segundo na opinião daqueles, “lhe trás uma situação extremamente vulnerável em termos de liquidez financeira.” Todavia, os profissionais que prepararam o manuscrito alertaram que a “situação global [da Engesa] vem piorando paulatinamente.” Destarte, na parte resolutiva desse relatório do SNI afirma-se, categoricamente, o seguinte: “Considerando o interesse nacional em indústrias sensíveis, e em face das situações econômico-financeiras-administrativas, difíceis e problemáticas, que a empresa tem experimentado, culminando com a atual, em que a conduta administrativa é apontada como uma das principais causas das dificuldades por que passa, parece que uma das formas para sanear a engesa, seria o Governo assumir o seu controle acionário, adquirindo, por intermédio da IBRASA/BNDE, parte das ações pertencentes a josé luiz whitaker ribeiro.”Footnote 14

Em outras palavras, a comunidade de inteligência e segurança brasileira, então encabeçada pelo general Otávio Aguiar de Medeiros, basicamente era cética acerca da gestão administrativa, econômico-financeira e patrimonial da Engesa. Todavia, no contexto do regime burocrático-autoritário comandado pelo general Figueiredo, a nacionalização dessa empresa era uma alternativa plausível, sob o argumento do interesse estratégico para a segurança nacional —eis um posicionamento governamental que lembra a parábola do “grande demais para quebrar”. Cumpre adiantar que ponderações bastante semelhantes foram retomadas no final da década de 1980. Foi nesse cenário de luzes e sombras que, em 1982, a Engesa anunciou seu mais ambicioso e derradeiro projeto. Isto é, um carro de combate principal que levaria o nome do patrono da cavalaria brasileira, o EE-T1 Osório.

O EE-T1 Osório: Virtudes, vontades e vicissitudes do projeto para construir um carro de combate principal

O EE-T1 Osório foi o mais avançado, complexo, surpreendente e finalmente infrutuoso dos projetos da Engesa. Desenvolvido a partir de 1982, esse tanque foi pensado para concorrer no mercado internacional, principalmente na Arabia Saudita, e outros países do Oriente Médio. Indubitavelmente, a Engesa tentou dar um salto tecnológico sumamente significativo, arrojado e arriscado. Observe-se que o projeto do tanque da Engesa era transcendental inclusive pela ausência de efetivo apoio governamental e pela necessidade de financiar com recursos próprios um completo programa de pesquisa e desenvolvimento. Ocorre que, para ser efetivamente competitivo, o projeto do EE-T1 Osório teria que alcançar —e até superar— as qualificações tecnológicas de outros tanques similares, dentre eles o M1 Abrams (estadunidense), o Challenger 1 (britânico), o AMX-40 (francês), o Leopard 2 A4 (alemão), ou o T-72 (soviético).

Nesse contexto, as despesas em pesquisa e desenvolvimento associadas ao EE-T1 Osório passaram dos US$70 milhões de dólares, quantia extremamente elevada para os padrões brasileiros da época. Todavia, o fator tempo era bastante importante, já que testes na Arábia Saudita estavam programados para o ano de 1985. Sem dúvida, para a Engesa tratava-se de um importante desafio passar da fabricação de blindados tecnologicamente intermediários, como o EE-9 Cascavel e EE-11 Urutu, para um produto tão sofisticado e basicamente destinado ao mercado externo. Cumpre assinalar que, sabidamente, o EE-T1 Osório não atendia os requerimentos financeiros e logísticos do Exército brasileiro. Daí que as contribuições do setor público neste projeto de uma empresa privada eram praticamente inexistentes (Strachman e Degl’lesposti Reference Strachman2010).

O EE-T1 Osório incluía vários componentes fornecidos por empresas multinacionais. Tratava-se de peças, motores e sistemas elétrico-eletrônicos, além da munição, fabricados por subsidiárias de empresas instaladas no Brasil ou importadas. Dentre os referidos componentes se sobressaiam as torres Vickers (Reino Unido), os motores MWM (Alemanha Ocidental), a transmissão e caixas de câmbio ZF (Alemanha Ocidental), os canhões Royal Ordnance (Reino Unido), os controles de tiro SFIN ou Marconi (França e Reino Unido, respectivamente), as suspensões hidropneumáticas Dunlop (Reino Unido), as câmaras térmicas Phillips (Holanda), ou as lagartas Diehl (Alemanha Ocidental). Perceba-se que, na hipótese de eventuais exportações do tanque brasileiro, para além da autorização procedente de Brasília, os governos dos países de origem dessas empresas multinacionais também teriam que ser consultados e manifestar a sua anuência com as transferências aos interessados específicos. Em outras palavras, os eventuais clientes do EE-T1 Osório não poderiam ser objeto de embargos de armas, quer do regime brasileiro, quer dos governos dos países de origem das empresas fornecedoras daqueles componentes.Footnote 15

O primeiro protótipo do EE-T1 Osório foi apresentado ao público, como mencionado, em 1985, e imediatamente embarcado para testes na Arábia Saudita, conquistando excelentes resultados.Footnote 16 O carro de combate principal brasileiro também foi apresentado, em 1988, nos Emirados Árabes Unidos. Todavia, a documentação consultada sugere que governos de outros países expressaram algum interesse nesse inovador sistema de armamento brasileiro; eis os casos da Argélia, Líbia, Paquistão, Iraque, Peru e Irã. Aparentemente, muitos desses governos desejavam o tanque brasileiro para substituir unidades obsoletas, especialmente de blindados M-60, AMX-30, T-55 ou Chieftain, dentre outros. Nesse contexto, a diretoria da Engesa depositava enormes expectativas em um contrato com os sauditas, que supunha o fornecimento de mais de trezentas unidades do tanque e um valor estimado em mais de US$2,2 bilhões de dólares. Certamente, tratava-se de um contrato que poderia contribuir a amortizar os altíssimos investimentos realizados pela empresa no projeto, reduzir as altas e crescentes dívidas da Engesa, e garantir renda e emprego aos acionistas, executivos, técnicos, pesquisadores e funcionários do conglomerado.

Acrescente-se a isso que a Engesa alcançou seu ápice em 1987 (Mello Reference Mello2010). Mesmo em um contexto de turbulência macroeconômica —isto é, a crise da dívida externa—, bem como das transformações políticas e sociais no Brasil de José Sarney e de Fernando Collor, a Engesa tinha conseguido expandir significativamente suas atividades empresariais, inclusive para fora da indústria de defesa. Com efeito, subsidiárias e associadas da Engesa incursionaram na indústria química, na indústria eletroeletrônica, na construção de helicópteros, na exportação de serviços, e até no ramo imobiliário. Nessa época, a Engesa chegou a possuir ao menos quatro grandes instalações industriais, em São José dos Campos, Juiz de Fora, Salvador e São Paulo. Dessarte, a referida empresa tinha uma folha de pagamento com mais de três mil empregados, que incluía um seleto grupo de cientistas, pesquisadores, técnicos e engenheiros brasileiros.

Como quer que seja, junto à expansão do conglomerado da Engesa também se incrementaram assustadoramente suas dívidas. Problemas de capitalização, denúncias de má gestão e desmandos administrativos, bem como os efeitos do chamado plano Cruzado —de estabilização macroeconômica—, colocaram a empresa em uma situação delicada já no final de 1987. Doravante, uma crescente sensação de desconfiança e ceticismo instalou-se em círculos financeiros públicos e privados. Nesse contexto, as fontes documentais sugerem, por exemplo, que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social-BNDES começou a exigir altas e crescentes garantias para novos financiamentos ou para servir de avalista, além de uma sensível cessão de direito de voto na diretoria e de ações preferenciais.Footnote 17 Essas dificuldades de capitalização da empresa também se manifestaram nas relações com outros agentes econômicos, especialmente com o Banco do Brasil, com o Banco do Nordeste e com a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Para complicar ainda mais a situação da Engesa, divergências entre acionistas maioritários e minoritários emergiram e passaram a ser debatidas nos tribunais e na imprensa, enfraquecendo a credibilidade do referido conglomerado e agravando o seu processo de descapitalização.

Em contraposição, a direção da Engesa geralmente alegava que as dificuldades da empresa eram conjunturais. Também se ponderava que uma parte significativa da crise era originada pelos altos investimentos em pesquisa e desenvolvimento realizados no projeto do tanque. Isto é, custos que em outros países normalmente eram assumidos pelos seus respectivos governos. Sem esquecer-se que, em outros países exportadores de grandes sistemas de armas, seus governos normalmente forneciam garantias de compras mínimas para as próprias forças armadas (Pierre Reference Pierre1982; Hartung Reference Hartung and Williams2012).

Todavia, nos pronunciamentos públicos e privados da Engesa mantinha-se o entendimento e o discurso de sua natureza estratégica. Ou seja, a narrativa de se tratar de uma empresa correlacionada à segurança nacional brasileira.Footnote 18 “Uma rápida e decisiva ação deverá ser tomada para não inviabilizar e manter saudável empresa tão importante para a Segurança Nacional”, afirmava-se em um documento sigiloso, de abril de 1988.Footnote 19 Contudo, as ponderações dos executivos da Engesa tinham cada vez menos ressonância em Brasília e em círculos financeiros nacionais e internacionais pelas razões anteriormente citadas.

Deste modo, expressões e intenções de “evitar a falência” da Engesa e um saneamento financeiro-administrativo —que incluía o afastamento da diretoria-executiva e/ou uma eventual nacionalização da empresa— voltaram a estar presentes nas fontes consultadas. A esse respeito, em um documento da Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional da Presidência da República, entidade herdeira do antigo Conselho de Segurança Nacional-CSN, de janeiro de 1989, e após tomar nota do balanço patrimonial correspondente a 1988, bem como uma projeção de dívida de US$272,0 milhões de dólares para dezembro de 1989, afirmava-se, por exemplo, o seguinte:

Como facilmente se pode constatar, se a empresa fosse sujeita às situações normais de mercado, ela seria considerada uma empresa em estado pré-falimentar, não tendo condições de levantar apoio financeiro sem uma complexa reformulação de seu plano de negócios seguida de um esforço exaustivo de capitalização.

Tratando-se de uma empresa de material bélico, sujeita a elevados riscos de retração de mercado, de concentração de clientes, e de flutuações de pagamentos contratuais, resta considerar seu caráter estratégico para o País como supridora das forças armadas e como detentora de capacitação tecnológica para produção do já aprovado Osório.

Em termos de negócios, a empresa deverá partir imediatamente para uma redução de atividades, de modo a adequar seu porte à conjuntura adversa representada pela atual fase. Uma desmobilização de ativos não essencialmente necessários deve ser iniciada, tanto pela venda de imóveis valiosos quanto pela transferência de controle/participação das subsidiárias não estratégicas.Footnote 20

Infere-se claramente da citação acima que o acelerado processo de descapitalização e as negativas tendências do património líquido estavam colocando a Engesa em uma situação extremamente delicada (Strachman e Degl’lesposti Reference Strachman2010). Sob o olhar do governo federal, um novo grupo empresarial poderia assumir a direção da empresa e definir um modelo de administração mais eficaz, voltado para resultados, austero, e mais transparente. O plano de negócios também poderia ser revisado, inclusive levando-se em consideração a inserção internacional da empresa, a procura de sócios, as relações com o governo, e as correlações com outros atores com vínculos e interesses na temática, particularmente com as instituições credoras. Desafortunadamente, o tempo era muito curto e o diretor-presidente da Engesa continuava apegado ao projeto do EE-T1 Osório.

Voltando-se à discussão do projeto do EE-T1 Osório, resulta interessante ponderar que o salto tecnológico almejado pela Engesa era paralelo e simultâneo a tentativas semelhantes impulsionadas por outras empresas brasileiras vinculadas à indústria de defesa, em particular pela Avibrás (sistema Astros), Embraer (caça-bombardeiro AMX A-1, Emb-312 Tucano, aviação civil), Bernardini (tanque MB-3 Tamoyo), e Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (corveta classe Inhaúma).Footnote 21 Ainda que por razões de espaço não seja possível incluir uma análise comparativa detalhada entre o devir do projeto do EE-T1 Osório e outros grandes sistemas de armas de fabricação brasileira da época, é notório que o destino dos blindados acabou ficando bastante comprometido (Franko-Jones e Dagnino Reference Franko-Jones and Dagnino1992).

Finalmente, em um contexto de consolidação democrática brasileira —que olhava com certo ceticismo uma indústria de defesa fortemente identificada com o regime burocrático-autoritário anterior (Moraes Reference Moraes2021)—, bem como a gradual resolução de numerosos conflitos e tensões internacionais correlacionadas à fase de bipolaridade flexível da segunda Guerra Fria (1985–1991), houve uma redução das exportações de armas, especialmente de armamento convencional, inclusive dos produtos da Engesa.Footnote 22 Com efeito, segundo as estatísticas do Stockholm International Peace Research Institute (Sipri 2022), as exportações brasileiras de grandes sistemas de armas experimentaram uma sensível queda, de US$267 milhões em 1984 para US$47 milhões em 1989, valor somente superior as exportações de 1993 (US$ 36 milhões) e 1974 (US$ 32 milhões). Evidentemente, diante das continuidades e mudanças no sistema internacional, a indústria de defesa do Brasil teria que preparar-se para novas circunstâncias, oportunidades e constrangimentos (Schneider Reference Schneider2013; Solingen Reference Solingen1998).

Crise e recomposição da base industrial de defesa: Paz no Shatt al-Arab e turbulência em São José dos Campos

Em julho de 1988, após quase oito anos de uma guerra extremamente violenta e custosa, os governos do Iraque e do Irã concordaram em assinar um cessar-fogo, seguido do fim das hostilidades (agosto), patrocinado pela Organização das Nações Unidas. Basicamente, as partes retornaram à situação fronteiriça de 1975. Isto é, a imposição de um status quo ante bellum. Não houve vencedores, nem vencidos. Entretanto, para os fins do presente estudo de caso é importante constatar que a paz no Shatt al-Arab acabou provocando gravíssimas consequências para a Engesa, em particular, e para numerosas outras empresas brasileiras dedicadas à indústria de defesa, especialmente ao agrupamento, conglomerado ou cluster instalado na cidade de São José dos Campos.Footnote 23 Ocorre que o Iraque de Saddam Hussein era um importantíssimo importador das armas produzidas pela Engesa, Avibras e Embraer, dentre outras (Domínguez Reference Domínguez2022b). A cessação de novas encomendas, combinado com a interrupção de pagamentos e uma virtual quebra de contratos —em virtude da terrível situação financeira pós-bélica do país árabe—, bem como a complexa situação macroeconômica brasileira no final do governo de José Sarney e no início da administração de Fernando Collor, colocou numerosas empresas do setor à beira da falência (Mello Reference Mello2010).

Ao longo de 1989 e início da década de 1990, a crise da indústria de defesa brasileira se manifestou na quase paralização das atividades, na demissão de funcionários, na evasão de técnicos, pesquisadores e cientistas para outros países —inclusive para o Iraque—, no atraso de pagamentos e encargos trabalhistas, e em mobilizações sindicais. Em 21 de março de 1990, a Engesa ingressou com um pedido de concordata preventiva, alegando dificuldades para amortizar uma gigantesca dívida, calculada em quase US$250 milhões de dólares. Segundo a imprensa, em carta à Bolsa de Valores de São Paulo, a Engesa afirmava ter “a fé de que o novo governo [do presidente Fernando Collor] garantirá recursos e credibilidade ao País. Com isso poderemos retomar nossas exportações e vencer a crise.”Footnote 24 Cumpre acrescentar que, pelos menos em um primeiro momento, a direção da Engesa negou-se a considerar a possibilidade de avançar em um processo de reconversão industrial, através do reforçamento das linhas de fabricação de produtos de uso civil ou dual. Nessa linha, um alto executivo da Engesa teria afirmado, por exemplo, o seguinte: “A empresa é, e sempre será, de material de defesa, caso contrário não se justificariam os investimentos feitos em tecnologia de ponta.”Footnote 25

Nesse cenário, em 10 de maio de 1990, as instalações da Engesa em São José dos Campos foram invadidas e ocupadas por um grupo de ex-funcionários demitidos que reivindicavam direitos trabalhistas.Footnote 26 A ocupação das instalações da Engesa prolongou-se até o dia 21 de maio, e curiosamente acabou sendo até elogiada pelo diretor-presidente José Luiz Whitaker Ribeiro nos seguintes termos: “A invasão foi um ato patriótico e agradeço aos metalúrgicos por isso.”Footnote 27 No entendimento do referido executivo, a ação e reivindicação dos ex-funcionários poderia ser importante, inclusive para dar visibilidade sociopolítica à crise da indústria de defesa. “Graças a ela [à ocupação das instalações] conseguimos sensibilizar o Governo e temos hoje o Exército como nosso aliado”, teria afirmado o diretor-presidente. Acrescentando, na sua asseveração, que “Parte da culpa pela crise é dos burocratas. Precisamos ter força para continuar empurrando a burocracia para chegarmos a uma solução para nós.”

Certamente, o diretor-presidente da Engesa estava tentando canalizar e transformar o descontentamento sindical em um fator de pressão social e política, procurando alguma reação, sensibilização e mobilização das autoridades federais em favor da empresa e do setor, particularmente do projeto EE-T1 Osório. Nessa linha, consta que, em 15 de maio de 1990, o presidente Fernando Collor teria ligado ao rei Fahd bin Abdul Aziz Al-Saud, da Arábia Saudita, com o propósito de informar acerca da concessão de garantias públicas para o eventual contrato de fornecimento de 312 tanques brasileiros. Quer dizer, um acordo orçado em US$2,2 bilhões de dólares, que certamente iria contribuir a solucionar a situação pré-falimentar da Engesa.Footnote 28

Agora sabe-se que, mesmo antes da invasão do Kuwait pelas forças iraquianas, em 2 de agosto de 1990, evento que resultou em uma sensível aproximação dos sauditas com o governo e com o complexo industrial-militar dos Estados Unidos, o regime monárquico árabe estava sinalizando que não iria adquirir o EE-T1 Osório. Para além das fortes pressões políticas e diplomáticas procedentes de Washington em favor da transferência do M1 Abrams, é bastante provável que a crise da indústria bélica brasileira, em geral, e a vulnerabilidade financeira e administrativa da Engesa, em particular, tivessem jogado contra as pretensões da empresa comandada pelo engenheiro José Luiz Whitaker Ribeiro. Todavia, a ausência de aquisições do EE-T1 Osório pelo próprio Exército brasileiro certamente poderia ser interpretada no exterior como um sintoma de falta de credibilidade e comprometimento do Estado brasileiro com um projeto extremamente complexo, custoso e até paradigmático. Nesse diapasão, a invasão do Kuwait pelo Iraque, seguida pelo reforço da aliança político-militar da Arábia Saudita e dos Estados Unidos, acabaram inviabilizando o bilionário contrato longamente almejado pelos executivos da Engesa. Decerto, tais decisões de atores brasileiros e estrangeiros terminaram agravando a já dramática situação administrativo-financeira da empresa.

Após o melancólico encerramento da projetada exportação dos tanques à Arábia Saudita, a Engesa tentou reagir. Ainda sob a presidência de José Luiz Whitaker Ribeiro houve um esforço de recuperação através da venda de ativos não-operacionais ou estratégicos, buscando atrair novos sócios nacionais e estrangeiros, bem como procurando obter o levantamento da concordata, uma gradual retomada da produção e o atendimento dos compromissos pendentes, especialmente de pós-venda, manutenção e fornecimento de peças de reposição aos seus numerosos clientes no mundo todo. Mutatis mutandis, esses esforços endógenos de saneamento não conseguiram atingir os objetivos almejados, dando continuidade ao grave processo de descapitalização e virtual agonia da empresa. Cumpre ponderar que, na época dos fatos, a família Whitaker Ribeiro controlava um 50 por cento do capital acionário da Engesa. A corporação Odebrecht (22 por cento) e o grupo Chaim Cury-Ambar (18 por cento) também eram acionistas importantes. O resto das ações estavam em poder de sócios minoritários, ex-funcionários, bancos e outros credores.

Ao longo de 1991, o governo brasileiro determinou intervir na Engesa, procurando uma reestruturação completa da empresa construtora, ainda que preservando a sua personalidade jurídica. Nesse contexto, o engenheiro José Luiz Whitaker Ribeiro foi convidado a se retirar do controle acionário e do empreendimento. Mesmo que não houvesse uma nacionalização propriamente dita, o governo Collor, através do Ministério do Exército e da Indústria de Material Bélico do Brasil-Imbel, passou a assumir crescentes responsabilidades administrativas e financeiras, correspondentes ao 50 por cento das ações que anteriormente estavam em poder da família Whitaker Ribeiro. Todavia, um grupo estrangeiro, neste caso a British Aerospace, aceitou o desafio de participar nessa reestruturação e reconversão industrial, que incluiu uma tentativa de retomada do projeto do tanque.Footnote 29

Em retrospectiva, sabe-se agora que esses esforços de reestruturação completa da Engesa não tiveram os resultados procurados, principalmente em função da alta dívida em moeda estrangeira, aproximadamente US$250 milhões de dólares. Consequentemente, em outubro de 1993, essa icônica empresa brasileira acabou tendo a sua falência decretada pela justiça. Cumpre acrescentar que a dissolução da Engesa marcou o ponto mais alto da crise da indústria de defesa brasileira, bem como uma recomposição do setor. Em contraste, a Embraer, a Avibras e algumas outras empresas conseguiram avançar em um processo de reconversão, sobretudo para atividades civis ou de uso dual civil-militar.

Considerações finais

A documentação consultada é bastante categórica e consistente em atribuir e impingir as dificuldades e percalços da Engesa-Engenheiros Especializados às limitações no campo financeiro e administrativo. Em numerosas oportunidades avaliadores capacitados questionaram a estrutural dependência da Engesa em relação ao capital de terceiros, isto é, do sistema financeiro e de agentes públicos e privados. Essa persistente vulnerabilidade e fragilidade não foi corrigida no momento oportuno; isto é, quando o caixa da empresa recebia expressiva receita decorrente das massivas exportações de seus produtos.

Lembre-se que a Engesa era uma empresa brasileira dedicada quase que integralmente à exportação de material de emprego militar —ou mais especificamente de grandes sistemas de armas, inclusive de viaturas militares tais como as famosas EE-9 Cascavel e EE-11 Urutu, além de caminhões todo-terreno—. Observe-se que, no período objeto desta pesquisa, isto é, entre 1974 e 1990, a Engesa chegou a exportar mais de 4.000 daquelas viaturas, com um valor global estimado em US$1,2 bilhão de dólares, a uns vinte países. Destacaram-se as exportações de produtos da Engesa para Iraque, Líbia, Colômbia, Chipre, Paraguai e Chile. Daí que ela acabasse sendo considerada como uma das mais importantes empresas desse ramo, conforme constatou e ponderou o chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro (Reference Guerreiro1992) ao general Danilo Venturini, em documento citado na introdução deste estudo de caso.

Em lugar de tomar enérgicas medidas de saneamento no momento ascendente do ciclo de exportações e de inserção internacional, os executivos e diretores da Engesa aparentemente se mantiveram na expectativa de um mercantilismo que incluía, em última instância, a crença em um acesso mais ou menos seguro e desimpedido a recursos públicos —isto é, ao financiamento governamental e a créditos subvencionados ou de fundo perdido—, e/ou a uma eventual nacionalização da empresa, sob o argumento da segurança e desenvolvimento, da independência, da defesa e da soberania nacional (Solingen Reference Solingen1998). Em outras palavras, no ethos da direção da empresa parecia persistir uma excessiva confiança na capacidade de interlocução, sensibilização e convencimento perante as autoridades econômicas, políticas, diplomáticas e militares, procurando manter a empresa livre de uma eventual falência e perdoando ou esquecendo desmandos administrativos do passado —eis a referida parábola do “grande demais para quebrar”.

Ao mesmo tempo, o engenheiro José Luiz Whitaker Ribeiro e outros executivos da Engesa frequentemente atribuíam as dificuldades, percalços e vicissitudes da empresa à política econômica impulsionada por sucessivos governos, desde Ernesto Geisel até Fernando Collor. A política cambial de compra foi uma questão particularmente sensível. Para uma empresa exportadora, as oscilações da taxa cambial e do valor real do dólar, bem como a política monetária e os planos econômicos implementados pelas autoridades do ramo, eram realmente fatores determinantes, cruciais e transcendentes. Eis a complexa correlação entre o denominado confisco cambial, de um lado, e as maxidesvalorizações da moeda para favorecer a competitividade externa dos produtos brasileiros, de outro. Nessa linha, já em 1977, o diretor-presidente da Engesa ponderava, por exemplo, o seguinte:

Nossos principais concorrentes trabalham com moedas fortes, conversíveis (dólar, yen, marco), enquanto que nós somos obrigados a vender a nossa mercadoria ou serviços em dólares que serão convertidos em cruzeiros para que possamos pagar nossos funcionários, fornecedores, impostos e eventualmente nossos acionistas. E quem faz a conversão é o governo, a uma taxa pré-fixada artificialmente.

Não é mistério dizer-se que estamos tentando tampar o sol com a peneira ao introduzirmos incentivos para exportação, tarifas alfandegárias e depósitos compulsórios para importação, depósitos restituíveis para viagens etc., tudo para esconder (de quem? De nós mesmos?) que a taxa de câmbio está errada. A irrealidade de nossa taxa cambial, se não corrigida, irá cada vez mais para o fracasso da nossa balança comercial.Footnote 30

Queixas e esclarecimentos semelhantes foram retomados no final da década de 1980, em um contexto de turbulência e desequilíbrios macroeconômicos que atingiram duramente as indústrias de exportação do Brasil. Na opinião desses executivos, alterações cambiais, monetárias, creditícias e de outros incentivos durante o período de execução de contratos com clientes estrangeiros provocavam graves impactos na rentabilidade de empresas altamente dependentes do mercado internacional, como era o caso da Engesa. Nessa linha, era incontestável que existia alguma corresponsabilidade governamental no devir deste importante conglomerado industrial e exportador brasileiro (Franko-Jones Reference Franko-Jones1987).

Como quer que seja, a confiança no eventual acesso a créditos subsidiados ou de fundo perdido, e um plano de negócios pouco rigoroso, além de uma recusa a impulsionar uma reconversão para o campo da indústria civil —lembrando-se que, originalmente, a Engesa tinha nascido no seio da indústria petroleira—, acabaram atrasando a implementação de oportunas medidas de saneamento financeiro e administrativo, semelhantes às observadas em outras grandes empresas do setor. Nesse cenário, a emergência do projeto do EE-T1 Osório configurou-se como um outro elemento importante no estudo do devir da Engesa (Proença Reference Proença1994).

De partida, é pertinente ponderar que a aspiração de construir no Brasil um carro de combate principal —ou main batlle tank—, com forte posicionamento internacional, precedeu em vários anos o anúncio da Engesa. Em 1977, por exemplo, a documentação consultada sugere que representantes comerciais associados à filial brasileira da empresa Krauss-Maffei-Wegmann —fabricante do famoso Leopard-2 A4— examinavam a “possibilidade de desenvolvimento de tanques militares pela Krauss Maffei do Brasil e sua exportação para o Paquistão”.Footnote 31

É bastante provável que nas suas frequentes viagens de promoção e divulgação comercial ao Oriente Médio, o próprio diretor-presidente da Engesa tivesse sido informado e até incentivado a examinar a possibilidade de fornecer blindados tecnologicamente superiores às bem-sucedidas EE-9 Cascavel e EE-11 Urutu. Tenha-se presente que numerosos governos daquela região pretendiam renovar suas brigadas mecanizadas. E um carro de combate principal, tecnologicamente inovador e com um preço competitivo —isto é, por volta de US$3,0 milhões de dólares a unidade—, certamente poderia ser bem recebido, especialmente no contexto do segundo choque do petróleo, entre 1979 e 1981, que subitamente enriqueceu a muitos governos (Klare Reference Klare1985).

Do ponto de vista da Engesa, a incursão nesse mercado específico dos carros principais de combate representava, sem dúvida, uma oportunidade e um desafio bastante elevado. Ainda que a Engesa tivesse mais de dez anos produzindo viaturas blindadas, elas eram tecnologicamente intermediárias. Para concorrer com alguma perspectiva de sucesso seria necessário atender aos altos requerimentos tecnológicos, e a uma rápida procura de componentes em diferentes mercados, o que resultou em uma dispersão da cadeia de fornecimento. Não menos importante e polêmica foi a determinação da direção da Engesa de avançar nesse projeto a despeito dos requerimentos e condicionalidades propostas pelo Exército brasileiro. Nessa linha, a ausência de um compromisso firme de aquisições mínimas pelo próprio governo brasileiro acabou atingindo negativamente o projeto do EE-T1 Osório, tanto no prisma financeiro, quanto no campo da credibilidade, da eficiência e da versatilidade doméstica e internacional desse sistema de armamento.

Outrossim, nesse cenário de acelerada busca de soluções em pesquisa, desenvolvimento, inovação e provas, é bastante provável que houvesse uma irregular e inoportuna flexibilização do planejamento financeiro. Daí que, em pouco tempo, foi possível constatar a existência de uma explosão dos custos do projeto do EE-T1 Osório. Com efeito, esses custos acabaram passando da casa dos US$70,0 milhões de dólares, uma quantia extremamente elevada e financiada pela própria Engesa. Comparativamente, em outros países, esses custos de pesquisa, desenvolvimento e inovação muitas vezes eram assumidos pelos seus governos (Pierre Reference Pierre1982; Hartung Reference Hartung and Williams2012). No caso da empresa brasileira, esses custos somente poderiam ser considerados sustentáveis na hipótese de resultar vencedora de uma concorrência internacional auspiciada pelo governo saudita para o fornecimento de 312 tanques, com um valor estimado em US$2,2 bilhões.

Não é incorreto sugerir que o esforço empresarial para conseguir vencer a concorrência saudita acabara deslumbrando, distorcendo e finalmente comprometendo o património e o destino da própria Engesa. O infeliz resultado da concorrência saudita supôs um golpe demolidor para o conglomerado, já que não foi possível transferir o projeto do EE-T1 Osório a outros mercados ou mesmo vendê-lo no próprio Brasil. Portanto, pouco tempo depois, em um contexto de crise de toda a indústria de defesa brasileira, a Engesa teve sua falência decretada, em outubro de 1993, deixando prejuízos financeiros orçados em mais de US$ 200,0 milhões de dólares, além de inúmeros problemas logísticos e de manutenção/fornecimento de peças de reposição aos numerosos clientes nacionais e estrangeiros.

Sob o tripé da vinculação entre indústria de defesa, exportação de armamento e política externa, é inquestionável que a experiência da Engesa marcou significativamente uma época (Franko-Jones e Dagnino Reference Franko-Jones and Dagnino1992). A documentação consultada sugere a persistência de um apoio governamental à empresa, especialmente durante os governos burocrático-autoritários de Geisel e Figueiredo. Nesse período poucos foram os embargos ou óbices impostos pelo governo brasileiro às vendas e à inserção internacional da Engesa. A empresa também tirou muito proveito da alta demanda de material de emprego militar em diferentes cenários regionais, especialmente em países afro-asiáticos e latino-americanos. Eis a época de ouro das exportações e do “supermercado” das armas brasileiras (Sipri 2022; Klare Reference Klare1985). Todavia, a qualidade e o desempenho dos produtos exportados pela Engesa foram reconhecidos pelos clientes, pela imprensa especializada e nos meios acadêmicos. Deste modo, a documentação consultada sugere que a fabricante em questão teria atingido seu máximo desenvolvimento em 1987.

Contudo, a partir de 1988, as indefinições dos sauditas em relação ao projeto do EE-T1 Osório, o encerramento da guerra Irã-Iraque e o ressurgimento das vulnerabilidades financeiro-administrativas, colocaram novamente a empresa em uma situação preocupante. A bem da verdade é importante acrescentar que, entre 1988 e 1993, a crise atingiu a quase todas as empresas dedicadas à indústria de defesa, e não exclusivamente à Engesa. Outras empresas construtoras também experimentaram a paralização de suas atividades, a demissão em massa de funcionários, problemas de descapitalização e perda de competitividade.Footnote 32 Todavia, no contexto da crise da dívida externa, os governos de José Sarney e de Fernando Collor foram obrigados a ajustar suas políticas setoriais, inclusive no que diz respeito à Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar-Pnemem (Mello Reference Mello2010).

Muitos autores e especialistas no assunto ainda discutem se a Engesa poderia ou deveria ter sido salva ou resgatada da falência. A esse respeito, os governos de Fernando Collor e Itamar Franco tentaram, entre 1991 e 1993, interceder e encontrar soluções para manter a empresa, ainda que sob uma outra administração, e com a eventual participação de novos sócios nacionais e estrangeiros. Agora sabe-se que as medidas de saneamento não foram suficientes. A dívida da empresa era sumamente elevada, o mercado internacional experimentou algumas retrações, e o governo iraquiano não honrou o pagamento de certos contratos. Tudo isso colocou a Engesa em uma situação claramente insustentável.

Para os fins do presente estudo de caso parece pertinente concluir que a experiência da Engesa fornece luzes e sombras acerca da vinculação entre indústria de defesa, exportação de armamento e política externa. Sob uma perspectiva acadêmica mais abrangente, entende-se que a pesquisa acerca da ascensão e declínio de uma empresa como a Engesa-Engenheiros Especializados abre alternativas para futuros estudos ainda mais ambiciosos, sofisticados e transcendentais. Dentre essas alternativas e possibilidades para futuras pesquisas destaca-se, por exemplo, a necessidade de aprofundar conhecimentos acerca da relação entre o Estado, as forças armadas e o empresariado brasileiro vinculado à base industrial de defesa. Em outras palavras, é plausível ampliar os estudos acerca dos processos de tomada de decisões, bem como as conexões clientelísticas constituídas entre as elites empresariais, militares e políticas —isto é, incentivos fiscais, taxa de câmbio, financiamento público ou tolerância diante da falta de transparência predominante nesse setor da economia—; quer na época nacional-desenvolvimentista, quer na atualidade.

Desde um ponto de vista teórico mais exigente, a evidência disponibilizada poderia contribuir a examinar o problema-objeto considerando-se os conceitos do Estado capitalista dependente ou do complexo industrial-militar. Nessa linha, cabe levar em consideração que a indústria da defesa é sumamente protegida em quase todos os países exportadores ou fornecedores de armas e munições. Com efeito, naqueles países geralmente predomina uma política mercantilista, fundamentada em critérios como a segurança nacional, a soberania, o desenvolvimento científico-tecnológico, o prestígio ou a inserção internacional altiva. Chegados a este ponto, e alicerçados em uma base empírica relativamente consistente, é plausível avançar com inferências causais e correlacionais legítimas, reprodutíveis, objetivas e verificáveis. Dito isso, cumpre insistir na vinculação do problema-objeto com numerosas disciplinas, especialmente de história, inovação tecnológica, estudos estratégicos e segurança internacional.

Sendo assim, aparece aqui a necessidade de auscultar a continuidade, a mudança e a ruptura nas políticas setoriais no contexto da transição e consolidação democrática brasileira. Reitere-se que a documentação consultada sugere que os executivos da Engesa tiveram considerável apoio dos governos de Geisel e Figueiredo (Silva Reference Silva2021; Bello, Figueiredo e Almeida Reference Bello, Figueiredo and Almeida2020). Tal entusiasmo governamental com a indústria de defesa e com a exportação de armas diminuiu a partir da redemocratização (Moraes Reference Moraes2021; Messias da Costa Reference Messias da Costa2021). Eis a formulação e implementação de novos mecanismos de controle e de regulação das exportações de material de emprego militar de fabricação brasileira. Apesar disso, a Engesa, em particular, e a indústria de defesa brasileira, em geral, atingiram o ápice das exportações em 1987, isto é, durante o governo de José Sarney. Destarte, uma análise crítica das implicações da mudança de regime político na indústria de defesa se erige em importante tema, que já começou a ser pesquisado a partir de fontes primárias.

Por último, mas não menos importante, um outro tema para futuras pesquisas poderia ser a reação de outras potências tradicionais no mercado das armas em relação ao ingresso de grandes sistemas de armamento como os produzidos pela Engesa, principalmente no caso de exportações a países em desenvolvimento. O assunto foi particularmente sensível para os produtores franceses, suíços e italianos, concorrentes diretos da referida empresa brasileira no mercado dos tanques e das viaturas blindadas.

Em síntese, é indubitável que a abertura de novos arquivos brasileiros —inclusive dos arquivos militares— poderia ajudar e contribuir a compreender um problema-objeto relevante e significativo, seja em termos locais, continentais ou mesmo globais. Tendo dito isso, e levando-se em consideração a pergunta-orientadora e a hipótese apresentadas na introdução, queremos crer que circunstâncias e determinantes domésticos, bem como oportunidades e constrangimentos do sistema internacional, criaram as condições para uma rápida ascensão e queda da Engesa. Contudo, as causas específicas de sua falência poderiam estar correlacionadas a desmandos administrativos, bem como a uma infrutuosa tentativa de realizar um virtuoso salto tecnológico, eis o que alguns pesquisadores denominam de “o vale da morte” da inovação. Logo, infere-se do exposto e deliberado que existe lastro documental suficiente para considerar corroborada, ao menos temporariamente, a hipótese deste estudo de caso.

Agradecimentos

Agradeço as observações ao texto de Rafael Duarte Villa, Camila de Macedo Braga, Diego Trindade d’Ávila Magalhães, Rodrigo Fracalossi de Morais, Hugo R. Suppo, e Aldira Guimarães Duarte.

Footnotes

1 Ramiro Saraiva Guerreiro a Danilo Venturini, Aviso G/DPR/08/665.16 (B46) (00) (Secreto-Urgentíssimo), Brasília, 12.1.1981, Arquivo Nacional, Coordenação do Arquivo Nacional no Distrito Federal, Acervo da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional [doravante AN/CSN]: AC ACE 17669 81 003, pp. 159–161.

2 Danilo Venturini a João Camilo Penna, Aviso n. 01/6ª, SC/2ª, SC/ 02B/ 81 (Secreto), Brasília, 13.1.1981, AN/CSN: AC ACE 17669 81 003, pp. 157–158.

3 Antônio Delfim Neto, Ernane Galvêas e João Camilo Penna, Portaria Interministerial SEPLAN-MF-MIC, de 15 de janeiro de 1981, Brasília, 15.1.1981, AN/CSN: AC ACE 17669 81 003, pp. 165–166.

4 Luis Augusto Sacchi e Luiz Aratangy ao Paulo Tarso Flecha de Lima, Aviso Ref: Situação Atual da Engesa e suas implicações políticas, São Paulo, 9.1.1981, AN/CSN: AC ACE 17669 81 003, pp. 162–166.

5 Para além da pesquisa no Arquivo Nacional, também houve consulta a certos documentos no Arquivo do Ministério das Relações Exteriores-AMRE.

6 Em termos comparativos, a Engesa tinha como principais concorrentes ocidentais às companhias construtoras Mowag (Suíça), Panhard (França), Ford (Estados Unidos) e Rheinmetall Landsysteme (Alemanha).

7 Objetivos da Política Nacional de Exportação de Material de Emprego Militar (PNEMEM), Anexo a Memorando de Antonino Lisboa Mena Gonçalves ao Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, DPG/ 146 (Secreto), Brasília, 27.10.1980, Arquivo do Ministério das Relações Exteriores, doravante AMRE.

8 José Luiz Whitaker Ribeiro a Raul, Carta privada, Trípoli, fevereiro de 1977, AN/CSN: AC ACE 17669 81 001, pp. 19–23.

9 Ibidem.

10 Luis Augusto Sacchi e Luiz Aratangy ao Paulo Tarso Flecha de Lima, Aviso Ref: Situação Atual da Engesa e suas implicações políticas, São Paulo, 9.1.1981, AN/CSN: AC ACE 17669 81 003, pp. 162–166.

11 Plese, Cecília. 1984. “Armas já correspondem a 4% do PIB.” Correio Braziliense, 2 de dezembro, 20.

12 José Luiz Whitaker Ribeiro e Luiz Augusto Sacchi à Comissão para Concessão de Benefícios Fiscais a Programas Especiais de Exportação-Befiex do Ministério da Indústria e Comércio, Ofício DCA-040/80, São Paulo, 10.11.1980, AN/CSN: AC ACE 17669 81 003, pp. 167–171.

13 Serviço Nacional de Informações-Agência Central, Informação n. 37/53/AC/81, Assunto: ENGESA-Engenheiros Especializados S/A, Situação Econômico-Financeira, sem lugar [provavelmente redigido em Brasília], 20.7.1981, AN/CSN: AC ACE 17669 81 001, pp. 1–14.

14 Ibidem.

15 Olive, Ronaldo, e Christopher Foss. 1984. “ENGESA MBT to Start Trials in June.” Jane’s Defense Weekly, 29 de abril, 640–641.

16 Moreira, Dalton. 1986. “Sauditas chegam para examinar armas brasileiras.” Folha de São Paulo, 5 de março, 6.

17 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social Participações-BNDESPAR, Pontos Críticos na Operação de Capitalização da ENGESA, Ofício, Brasília, sem data [circa abril de 1988], AN/CSN: AC ACE 73803 90 001, p. 29.

18 Engesa, Comentários sobre os ‘Pontos Críticos na Operação de Capitalização da Engesa’ mencionados no relatório do BNDES, Ofício, São José dos Campos, junho de 1988, AN/CSN: AC ACE 73803 90 001, pp. 18–24.

19 Engesa, Pró-Memória da Situação—Engesa/BNDES, Ofício, São José dos Campos, 26.4.1988, AN/CSN: AC ACE 73803 90 001, pp. 25–26.

20 Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional da Presidência da República, Aviso, Brasília, 30.1.1989, AN/CSN: AC ACE 73803 90 001, pp. 5–9.

21 Pereira, Roberto. 1984. “O salto tecnológico da indústria nacional.” Exame, 28 de novembro, 84–87.

22 “A conexão brasileira.” Veja, n. 953, 10 de dezembro de 1986, 62–63.

23 Faria, Sheila. 1990. “Nossa indústria bélica perde seu poder de fogo.” Vale Paraibano, 11 de junho, 3.

24 “Engesa pede concordata em carta de 6 linhas,” Vale Paraibano, 22 de março de 1990, 5.

25 “Empresários rejeitam reconversão,” Vale Paraibano, 11 de junho de 1990, 5.

26 Valéria, Cristina. 1990. “Engesa de São José ocupada por demitidos.” Vale Paraibano, 11 de maio, 8–9. “Engesa: ocupação sem bloqueio,” Vale Paraibano, 12 de maio de 1990, 3.

27 “Ocupação foi até elogiada,” Vale Paraibano, 5 de julho de 1990, 3.

28 Faria, Sheila. 1990. “Engesa garante venda de tanque aos sauditas.” Vale Paraibano, 5 de julho, 3.

29 Ministério das Relações Exteriores a Embaixada em Riad, Telegrama 120 (Secreto), Brasília, 11.5.1991, AN: SNA AMG 1,0, pp. 12-13/284.

30 José Luiz Whitaker Ribeiro a Raul, Carta privada, Trípoli, fevereiro de 1977, AN/CSN: AC ACE 17669 81 001, pp. 19–23.

31 Ministério das Relações Exteriores a Embaixada em Bonn, Minuta de telegrama 883 (Secreto-urgentíssimo), Brasília, 23.9.1977, AN/CSN: SNA AMG 12, P. 172-173/180.

32 Secretaria de Assuntos Estratégicos-Departamento de Inteligência, Informação n. 00001/320/S2K/DI/SAE/90/X, Assunto: Crise na Indústria Bélica de São José dos Campos/SP—Evasão de cientistas, pesquisadores e técnicos do setor, Brasília, 1.8.1990, AN: BR RJANRIO H4 AGA DI076777 94 d0001 de 0001.pdf, pp. 3–29.

References

Referências

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