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O conceito de forma literária em Antonio Candido e Ángel Rama: Continuidade e ruptura num diálogo crítico latino-americano (1940–1970)

Published online by Cambridge University Press:  08 June 2022

Fábio Salem Daie*
Affiliation:
Letras Clássicas e Vernáculas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brazil
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Resumo

O artigo investiga o conceito de forma literária segundo Antonio Candido e Ángel Rama, com ênfase nas formulações publicadas pelo jovem Candido na primeira metade da década de 1940 em Brigada Ligeira e na revista Clima. Essas formulações resguardariam um caráter chave para a compreensão do mesmo conceito na fase madura de ambos os críticos, sobretudo a partir de 1970. Desse período, são referidos textos como “Dialética da malandragem”, no caso de Candido; e “Sistema literario y sistema social en Hispanoamérica”, no que se refere a Rama. Num primeiro momento, ao vincular o conceito de forma à psicologia desvelada pela obra, Candido buscava discernir no seu fundamento estético certa dinâmica ideológica da burguesia brasileira. O artigo deseja mostrar como tal vínculo entre classe social e forma literária teria sido preservado, com as devidas modificações, por Rama em sua compreensão da literatura transcultural na América Latina. Uma das conclusões diz respeito aos esforços de sistematização dos corpora literários (brasileiro/latino-americano), os quais teriam conduzido a acepções diversas do conceito de forma. Uma segunda conclusão abrange as dimensões de negatividade e positividade nos conceitos de Candido e Rama, em sua fase madura, fator responsável pela ruptura teórica neste diálogo crítico.

Abstract

Abstract

This article addresses the concept of literary form according to Antonio Candido and Ángel Rama, emphasizing the formulations published by Candido during the first half of the 1940s in Brigada Ligeira and Clima. These formulations are key to understanding the same concept during both critics’ later decades, especially from 1970 onward. The article focuses on texts such as “Dialética da malandragem,” in Candido’s case, and “Sistema literario y sistema social en Hispanoamérica,” by Rama. Initially binding the concept of form to the psychology unveiled by the narratives, Candido sought to discern in its aesthetic foundation certain ideological dynamics of the Brazilian bourgeoisie. The article demonstrates how such a link between social class and literary form would have been preserved, with the appropriate adjustments, by Rama in his understanding of the transcultural literature in Latin America. One conclusion concerns efforts to systematize the (Brazilian or Latin American) literary corpora, which would have led to different understandings of literary form. The second comprehends the dimensions of negativity and positivity in the later concepts of Cândido and Rama, a factor responsible for the theoretical disruption of the critical dialogue here addressed.

Type
Epistemological and Historical Reflections on Latin American Studies
Creative Commons
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Copyright
© The Author(s), 2022. Published by Cambridge University Press on behalf of the Latin American Studies Association

Na abertura do volume de Transculturación narrativa en América Latina, primeira edição que pertenceu a Antonio Candido, publicada pela Siglo Veintiuno em 1982, lê-se a seguinte dedicatória: “Para Antonio, Gilda, estas imprudentes teorizaciones que se meten por las letras brasileñas con impudor. Un abrazo de Ángel. Paris, out/1983”.

Aparentemente, Ángel Rama esteve por três ocasiões no Brasil. A primeira teria ocorrido no final da década de 1950, em contato com Carlos Drummond de Andrade. Depois, novamente em 1982 e 1983, esta última vez em Campinas, já em constante diálogo com intelectuais brasileiros. Exilado do Uruguai após o golpe militar de 27 de junho de 1973, Rama reside alguns anos em Washington, nos Estados Unidos. Em 1982, numa polêmica decisão das autoridades de imigração, seu visto de residência (e aquele de sua esposa, a crítica de arte Marta Traba) não foi renovado, fato que o obrigou a exilar-se outra vez, agora em Paris, de onde remete o exemplar de seu livro. O “impudor” referido na breve dedicatória se devia não apenas ao respeito dedicado aos colegas, Antonio e Gilda, senão também à lucidez quanto à magnitude do projeto que levava a cabo após décadas de pesquisas contínuas. Exprimia igualmente algo de sua personalidade irreverente e buliçosa, sem dúvida a face mais conhecida da atuação como organizador e agitador cultural.

Em 1960, quando se despedia do magistério de dois anos e meio na recém-fundada Faculdade de Letras de Assis (São Paulo) e era autor improvável do recente Formação da literatura brasileira (1959), Antonio Candido esteve no Uruguai como professor convidado. Pese ter escrito também O método crítico de Silvio Romero (1945)—tese com a qual postulara a cátedra de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e que, uma vez cedida a Mário de Souza Lima, garantir-lhe-ia a livre-docência na mesma área—, aquele representava um período delicado em sua trajetória profissional. Até 1958, quando aceita convite para lecionar em Assis, Candido atuara, junto com Florestan Fernandes, como professor-assistente no curso de Sociologia da USP, então sob a tutela de Fernando de Azevedo. Simultaneamente, exercia-se como crítico literário, primeiro na revista Clima (1941–1944), a convite do amigo Lourival Gomes Machado; na sequência, nos jornais Folha da Manhã (1943–1945) e Correio de São Paulo (1945–1947), tribunas das quais acompanhou as obras de Clarice Lispector, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e João Guimarães Rosa.

É, aliás, este exercer-se como crítico no seio da nova geração universitária—no âmbito do grupo de Clima—um dos principais fatores que contribuíram para selar sua atuação na crítica literária. Nas palavras de Ruy Coelho, “de uma certa maneira, não fomos nós que fizemos Clima, foi Clima que nos fez” (Pontes Reference Pontes2009, 66). A frase ganha relevo quando se constata o fato de que, devido a este empenho, muitos de seus colaboradores seriam convidados a escrever na grande imprensa. A respeito do pendor à crítica literária, nutrido em paralelo à formação nas ciências sociais, Candido chegaria a afirmar que nunca se considerara sociólogo, “mas apenas um docente de sociologia, o que era outra coisa” (Pontes Reference Pontes2001, 27), e o redirecionamento da carreira na década de 1960—após dezesseis anos como docente em sociologia—representou uma preocupação marcante (Ramassote Reference Ramassote2010).

Nesse sentido, é instrutiva a comparação de sua trajetória com aquela do colega Florestan Fernandes, pela qual se poderia vislumbrar o grau de “deslocamento” de Candido. Combinando os figurinos de scholar exemplar e de trânsfuga acadêmico; integrado ao incipiente universo da pesquisa uspiana, mas aspirando à crítica literária; feito livre-docente em literatura brasileira e doutorando na sociologia, Candido defenderia em 1954 a tese sobre a cultura caipira paulista, intitulada Os parceiros do Rio Bonito. Clássica nos procedimentos de pesquisa, sua realização destoava, porém, dos expedientes de elaboração monográfica, “seja pelo formato expressivo adotado, seja pelo quadro eclético de referências teóricas […] e seja, ainda, pela presença da proposta política defendida no capítulo conclusivo” (Ramassote Reference Ramassote2010, 114). Na fatura da escrita, bem como na fecunda convivência entre sociologia, antropologia e literatura, o trabalho de Candido contrastava enfim com aquele de Florestan, cuja metodologia, composição e temáticas o aproximavam do labor sociológico clássico, enquanto sublinhavam certa inflexão—sentida, à época, no ambiente intelectual da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras—entre “ciência” e “cultura”, distinção amparada nas exigências de consolidação do campo de conhecimento que resultaria, posteriormente, na chamada “escola paulista de sociologia”. Reabilitada na transição à docência da Literatura (entre 1958 e 1960), tal interdisciplinaridade de Candido se faria cada vez mais presente nos seus ensaios, os quais conjugariam um tipo muito particular de prosa analítica.

Chamado a pronunciar o ciclo de quatro conferências na Universidade da República, em Montevidéu, o comedido Candido travaria contato em 1960 com outro professor, oito anos mais jovem e de conduta enérgica, cujas atividades múltiplas e hábitos intensos de leitura levavam colegas a duvidar de que pudesse dormir (Rama Reference Rama1983). À época, Ángel Rama ministrava cursos no ensino médio, além de dedicar-se à crítica cultural no diário Acción e no semanário Marcha (1959–1968). Também encetara a publicação da coleção Letras de Hoy, pela casa editorial Alfa, mantendo-se a par dos recentes desenvolvimentos da literatura hispano-americana, como os dos uruguaios Felisberto Hernández e Juan Carlos Onetti (Rama Reference Rama1985, 386).

A amplitude dos interesses de Rama, aliada a um esforço de teorização do corpus literário, bem como ao diálogo com os principais intelectuais latino-americanos nos anos 1960 e 1970, fizeram de seus aportes obra única na história da crítica literária do Uruguai e do próprio subcontinente. Em particular seus esforços—crescentes a partir do encontro com Candido—por integrar a literatura brasileira no escopo mais amplo da cultura latino-americana, “entendida ésta no como la suma de las literaturas nacionales sino como un sistema en sí misma” (Peyrou Reference Peyrou2010, 12).

Integrante da “geração crítica”—como ficou conhecido certo grupo de intelectuais uruguaios nascidos entre 1920–1940—, Rama participou de profunda renovação dos estudos literários no Uruguai do século XX. Em artigo sobre essa geração, Ruffinelli (Reference Ruffinelli1994, 120–121) recorda que Rama e outros colegas foram levados a reelaborar seus instrumentos teóricos “ante las exigencias de una literatura que ya no podía leerse del mismo modo en que Zum Felde, o Luis Alberto Sánchez […] o Enrique Anderson Imbert habían leído la de las décadas anteriores”. Não apenas um corpus diferente estava surgindo, mas “no existían respuestas preestablecidas para dar cuenta de él; también esas respuestas fueron nuevas pues como ejercicio metodológico actuante, la crítica se estaba renovando a influjos de múltiples estímulos” (Ruffinelli Reference Ruffinelli1994, 120–121).

Parte dessa renovação foi levada a cabo no semanário Marcha (1939–1975), a cuja qualidade formativa se somava (talvez com certo exagero de Ruffinelli) “una índole independiente, artesanal e intelectual como no se ha repetido en América Latina, ni tal vez en ninguna parte del mundo” (Ruffinelli Reference Ruffinelli1994, 120–121). A “geração crítica” teria sido responsável, enfim, por reavaliar os cem anos de legado literário uruguaio (desde a independência do país), sopesando-o com o julgamento das gerações precedentes. Tais objetivos constavam já do programa do grupo: dar sentido à tradição literária nacional; reestruturá-la a partir de um novo entendimento de seu significado; valorar e hierarquizar a tradição literária; levar adiante o esforço crítico precedente, mormente por meio de periódicos e suplementos culturais.

Entre os anos de 1940–1950, contudo, Rama ainda não se debruça com afinco sobre os fatores socioculturais os quais, agindo sobre as “sequências literárias”, comporão a síntese artística que o uruguaio chamará de transculturação. Segundo Rocca (Reference Rocca2006, 10), à parte sua recusa do imperialismo norte-americano, a consonância mais forte com as posições dos anos posteriores “radica en la común aceptación del destino ‘occidental’ o europeo del país, y es ilustrativa la ausencia de una visión que inserte a Uruguay en América”.

Ao longo dos anos 1950, uma inflexão no seu pensamento (retomada adiante) o leva a se preocupar com os traços particulares da cultura sul-americana e uruguaia. Em “La conciencia crítica”, publicado em fins de 1969 na Enciclopedia Uruguaya, Rama estabelece dois momentos da “geração crítica”, cuja inflexão residiria na crise econômica de 1955, a qual sinalizava o esgotamento da política de industrialização intensiva, ao cabo de um processo “que hoy nos parece nítidamente dibujado como la curva de descomposición del liberalismo […]. Hemos llegado al fin de una época” (Rama Reference Rama1969, 106). Delimita dessa maneira o ambiente ideológico no qual se formou, marcado por uma reorientação da tendência internacionalista das intervenções pré-crise, bem como pela reavaliação do papel do intelectual na vida política do país.

Tratava-se, como dito acima, de reinserir o Uruguai no quadro latino-americano, em certo sentido em contraposição à historiografia oficial apoiada nos êxitos do “batllismo”,Footnote 1 e depondo ênfase sobre aspectos então marginalizados, como o universo cultural das massas rurais negligenciadas pela modernização: daí o resgate da figura do gaucho ante aquelas do homem urbano e do imigrante europeu (Romano Reference Romano2017).

São seus primeiros artigos sobre a poesia gauchesca—mais tarde reunidos no livro Los gauchipolíticos rioplatenses (1976)—, em que analisa, entre outras, a obra do “primer poeta de la pátria”, Bartolome Hidalgo. Publicados no início dos anos 1960, os textos “Bartolomé Hidalgo: Surgimiento del poeta de la Revolución” (1963) e “Elías Regules: La gauchesca domesticada” (1961) são os polos deste livro em que o autor investiga a emergência de uma forma artística original, depois transformada em tradição e justaposta ao próprio imaginário da nação uruguaia. Rama tardará, num país de forte matriz europeia e classes médias consolidadas, a encarar a gauchesca como porta de entrada ao amplo veio das línguas e das culturas populares (Rocca Reference Rocca2006, 10), e tais artigos chamam atenção, entre outros atributos, pelo que antecipam de futuras inclinações, visto que a teoria da transculturação pressupõe tal componente popular.

Do conhecimento mútuo ocorrido naquele Uruguai de 1960, regado ainda pela convicção num futuro auspicioso para o subcontinente que a Revolução Cubana ratificava, germinaria um longo diálogo. O período se mostra fértil para projetos de integração regional, nos quais a América Latina assume certa dimensão utópica, em oposição a interesses ditos estrangeiros. Mencione-se que os questionamentos a respeito da identidade nacional—caros à intelectualidade do subcontinente até meados do século XX—acompanhavam o despontar de narrativas que buscavam definir o quinhão civilizatório latino-americano ante a emergência dos “povos louros do norte” (para falar como José Martí) e, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, face à débâcle da herança europeia das Luzes. Em outras palavras, o latino-americanismo que se fortalecerá em Rama vinha ao encontro do escrutínio que a melhor literatura do tempo dirigia ao capitalismo segundo seu último instantâneo na Europa e nas ex-colônias europeias. “Pode-se perceber que, sobretudo a partir da década de sessenta, Ángel Rama, além de se ater a questões relativas à América hispânica, busca uma maior aproximação com o Brasil” (Cunha Reference Cunha2007, 34), propondo, junto a outros intelectuais da época, “a necessidade de se pensar a ‘América Latina’ como um todo” (Cunha Reference Cunha2007, 34).

Segundo Rocca (Reference Rocca2001, 50), naqueles anos o uruguaio tinha nas páginas do periódico Marcha a principal ferramenta com a qual “aspiraba a contribuir al debate de la intelligentsia a escala latinoamericana”.Footnote 2 Com base nessas aspirações, Rama pediria a contribuição de Candido para o semanário, solicitação que este frustrará num primeiro momento, com a justificativa de que estava envolvido em assuntos universitários e com a promessa de que não faltaria, no futuro, ocasião adequada (Candido e Rama Reference Candido and Rama2018, 47).

Certo é que as três décadas subsequentes, marcadas por golpes de Estado que instauraram ditaduras militares em Brasil, Uruguai, Argentina e Chile, tratariam de dificultar tais projetos de integração, afetando o contato entre os dois críticos e, em âmbito institucional, os complexos trabalhos da Biblioteca Ayacucho, patrocinada pelo Estado venezuelano e um dos maiores legados da verve latino-americanista de Rama. Como se sabe, dos quinhentos títulos inicialmente planejados para coligir o que o subcontinente concebera, desde a colônia, de mais relevante e original, cem deles deveriam reunir, segundo o uruguaio, a contribuição brasileira, pela qual Candido era o principal responsável.

As trajetórias de Rama e de Candido denotam a relevância, para o processo de desprovincianização latino-americano, da crítica muitas vezes militante que intelectuais empreenderam nas cátedras universitárias, em congressos de área, instituições culturais, órgãos oficiais, revistas científicas e suplementos culturais: verdadeiro esforço de catching up com correntes de pensamento e vanguardas estéticas de Europa e Estados Unidos, ao mesmo tempo em que procuravam avaliar, na medida de suas forças, os aportes da safra artística local. É nesse contexto que se poderia aquilatar o impacto gerado no uruguaio por um livro como Formação da literatura brasileira—e que Rama leu na sequência de sua publicação—, cuja originalidade do método propunha uma nova compreensão das literaturas nacionais. Essa compreensão não está expressa, vale notar, na curadoria da Biblioteca Ayacucho, e ambas—as compreensões de Candido e a de Rama—forneciam respostas diversas às questões ligadas à emergência civilizacional das colônias latino-americanas.

Tal constatação demonstra que o uruguaio manteve postura seletiva, pese a admiração por Candido, no que dizia respeito a conceitos e inovações metodológicas formulados pelo brasileiro. Dito isso, a predisposição de Rama a reinserir a arte em seu contexto sociocultural, evitando o formalismo estrito, assume nova envergadura com a incorporação de algumas contribuições daquele. A partir do encontro em Montevidéu, conceitos como o de “sistema literário” e o de “formação” (realizada no pêndulo localismo-cosmopolitismo) serão mobilizados no esforço interpretativo do corpus literário latino-americano. Uma década mais tarde, durante os estudos sobre as vanguardas dos anos 1930, Rama afirmará, em carta a Candido, que a constatação de que partilhava, desavisadamente, das mesmas conclusões do brasileiro significava “a corroboração de que não me engano” (Candido e Rama, Reference Candido and Rama2018, 79–80).

Projeto intelectual e engajamento popular

Como se pode antecipar, não há definição exclusiva do conceito de forma em Antonio Candido, pois tal conceito, segundo se depreende da leitura atenta de sua produção crítica, modificou-se paulatinamente. Para o que interessa a este texto, recuperarei apenas dois momentos: o conceito de forma segundo o jovem Candido da década de 1940 e, na sequência, com fins comparativos, como este se apresenta para ambos os teóricos maduros, já na década de 1970. O intuito é demonstrar como existiria uma relação e, ao mesmo tempo, certa assimetria entre as concepções finais de Candido e Rama, sublinhando como tais divergências se devem à particularidade de seus projetos intelectuais.

Para tanto, recobro as intervenções iniciais de Candido publicadas na imprensa—na revista Clima, de modesta circulação, em seguida na Folha da Manhã (nesse último caso, republicadas na coletânea Brigada Ligeira)—, as quais compõem um corpus particular nas reflexões do brasileiro. Escritos no primeiro lustro da década de 1940, são “artigos de circunstância” (palavras do autor no prefácio à coletânea de 1945), e se por um lado abordam temas variegados, por outro expressam a “constância do ponto de vista” depois superado pelas formulações maduras.

Dito isso, servem à compreensão dos posicionamentos inaugurais assumidos por Candido a respeito da arte, por vezes ofuscados pelas contribuições de ordem historiográfica, teórica e ensaística realizada no decorrer das décadas seguintes. Encontram-se aí noções germinais de seu pensamento, a partir das quais será possível compreender mais a fundo a evolução de conceitos que permeiam a produção ulterior, bem como valores que susteve desde a juventude. Suas formulações maduras são entendidas aqui como os ensaios “Dialética da malandragem” (1970) e “De Cortiço a Cortiço” (1976), nos quais romperá definitivamente, como veremos, com certas concepções dos anos de mocidade.

No caso de Ángel Rama, trata-se dos textos sobre a transculturação, com os quais formula uma teoria da literatura latino-americana coerente com seu projeto intelectual, sobretudo a partir dos anos 1960. Entre eles, La narrativa de Gabriel García Márquez: Edificación de un arte nacional y popular, no qual busca (mesmo indiretamente) conciliar as dimensões de arte nacional e latino-americana; o ensaio “Sistema literario y sistema social en Hispanoamérica”, em que expõe a noção de “sequência literária”, partícipe da sua compreensão de forma; e Transculturación Narrativa en América Latina, talvez sua obra mais conhecida sobre o tema.

Dos anos como estudante de Sociologia e colaborador da revista Clima e da Folha da Manhã (1941–1945) até o período como professor respeitado, fundador do curso de Teoria Literária da USP (cerca de duas décadas mais tarde), algumas noções surgiram e outras, já latentes, parecem lapidadas no pensamento de Candido. Da juventude, em contato com modernistas como Mário de Andrade e marcado pela “revolução de 1930”—que arrebatara o poder político às velhas elites agrárias de São Paulo e Minas Gerais—, teria permanecido certa filiação a uma perspectiva “popular” do país, aparentemente mais sistemática do que os engajamentos de cariz doutrinário.

Obviamente, não se quer com isso dizer que Candido fosse uma personalidade afastada das lutas políticas, interpretação, de resto, desautorizada pela trajetória como intelectual público—vide a filiação à União Democrática Socialista, ao Partido Socialista Brasileiro, ao Partido dos Trabalhadores—. Mas, se tinha no marxismo importante instrumento analítico, por sua vez parece seguro afirmar que manteve certa distância do cotidiano da atuação partidária, preferindo pautar-se por um antielitismo aguerrido, alimentado no conhecimento da iniquidade da estrutura social herdada da colonização. Em certa ocasião, dirá a respeito dessa postura: “Quem passa a vida mexendo com literatura, vendo as análises sutis do comportamento […], tem certa dificuldade em aceitar ou rejeitar em bloco, como é preciso fazer na hora da ação” (Candido apud Puls Reference Puls1998).

É esta deliberada opção pelos “de baixo” o mesmo elemento que, na juventude, fará dele um precursor do socialismo democrático no país—em oposição a um socialismo de quadros ou de vanguarda—e o qual, na maturidade, quando da “Dialética da malandragem”, evocará “um aspecto geral da sociedade brasileira” (Schwarz Reference Schwarz1987, 130), caracterizado pelo “universo sem culpa” que deixa entrever uma “terra sem males definitivos” (Candido Reference Candido2010a, 46).

Os textos de Brigada Ligeira, do período em que Candido atua como crítico regular na imprensa paulista, trazem suas invectivas ao desarraigamento da elite brasileira das “coisas da terra”. Na análise de A quadragésima porta (1943), de José Geraldo Vieira, define como “sonho de verão dum burguês recalcado” o romance que seria, “do ponto de vista ideológico, um fruto do idealismo burguês que caracterizou o nosso século até a presente guerra” (Candido Reference Candido2011, 29). Ao chamar atenção ao fato de que a massa empobrecida permanece ausente do livro, nota em seguida que este representa “o romance de uma classe, a alta burguesia internacionalizada, dotada, graças aos recursos materiais, de grande mobilidade no espaço, e dos clientes que lhe servem de satélites: artistas, intelectuais, servidores” (Candido Reference Candido2011, 34). Emerge aqui um modelo de crítica amparado na perspectiva de mundo esposada pelo escritor e, como seu fundamento, os elementos ideológicos pertencentes à classe social.

A fiar-se nos textos de ocasião, bem como em empreendimentos de fôlego da juventude—a tese de doutorado Os Parceiros do Rio Bonito (cuja fatura remete ao período 1947–1954)—, Candido compreende aí a noção de “classe” como resultado de dupla conjunção, sincrônica e diacrônica. Na primeira—na qual reverbera a “posição fecunda” de Karl Marx—discerne “o complexo de problemas” (Candido Reference Candido2010b, 25) que caracteriza determinado grupo, com ênfase à dinâmica de equilíbrio-desequilíbrio entre práticas econômicas (técnicas produtivas, tecnologias materiais) e caracteres sociais (formas de organização coletiva) responsáveis pela constituição de um “modo de vida” particular, composto também por fatores de ordem artística e espiritual; na segunda, reconhece as filiações históricas do grupo, sua origem no interior de uma estrutura social (no caso brasileiro, fundada durante a colonização) e cuja coesão se deve, em parte, ao papel assumido por esse grupo no desenvolvimento periférico do capitalismo moderno, ou seja: em terras definidas pelo regime de produção de matérias primas às metrópoles, tal como caracterizado, à época, por autores tão díspares como Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda (referidos múltiplas vezes por Candido naquele momento).

É de Buarque de Holanda a sugestão de que uma das constantes da vida espiritual da elite brasileira seria certo sentimento de deslocamento, visto que tal camada empreende a aclimatação de ideias e instituições europeias a um ambiente “muitas vezes desfavorável e hostil”, o que faria de seus representantes “uns desterrados em nossa terra” (Holanda Reference Holanda2011, 31). A conhecida abertura de Raízes do Brasil (1936) ganhará novo fôlego nas análises do jovem Candido, para quem muitas das expressões literárias locais, na condição de êmulos das tendências estrangeiras, viam-se aptas a radicalizar seus princípios. É dizer, menos atados aos constrangimentos sociais que o meio original sói impor relativamente à sua arte, era possível ser mais kafkiano que Franz Kafka, mais surrealista que André Breton, mais futurista que Tommaso Marinetti. Tal virtuosismo apenas reforçaria o desencontro entre mundo europeu e latino-americano, fato que garantiu, na margem do Atlântico, fatura similar e distinta das obras estrangeiras tomadas como modelo. Em suma, no ultracosmopolitismo do subcontinente se filtrava a província, e pela incongruência entre a realidade inculta do solo pátrio e o ideal culto europeu saltava a imagem, por vezes constrangedora, dessa situação.

Eis porque, na apreciação do estilo surrealista de Rosário Fusco, autora d’O agressor (1943), Candido sugere que o surrealismo, deslocado do contexto original, constituiria mera contribuição à “técnica” literária. Trata-se de “uma tentativa de transplantar a planta estrangeira para a terra pátria. […] Variação que não se apresenta integrada na nossa experiência brasileira: superfetação, numa palavra” (Candido Reference Candido2011, 97). Importa ao jovem Candido o escritor como “indivíduo que exprime sempre uma ordem da realidade segundo um dado critério de interpretação” (Candido Reference Candido2011, 64), critério esse colhido do complexo de valores de um grupo social que se vê, ordinariamente, aquém da vida espiritual europeia.

A crítica se debruça assim no desbaratamento de uma psicologia do autor, a qual, informada pelos aspectos ideológicos da classe social, permaneceria como horizonte irredutível da obra. Mesmo quando trata da economia do livro de Geraldo Vieira, ou seja, do desenvolvimento de sua estrutura, Candido nota que o modus operandi da ficção emula aquele modus vivendi do estrato social a que o autor se vincula. “Quando não os necessita mais [das personagens], [o autor] liquida-os de modo sumário. É exatamente a maneira por que a grande burguesia imagina as relações com os seus semelhantes das outras classes” (Candido Reference Candido2011, 36). Dessas observações se depreende uma correlação, mediada pelo empenho artístico, entre os vetores estruturantes da obra e aqueles valores distintivos da classe social de origem, a saber, a elite e a classe média nacionais.

Tais juízos devem ser compreendidos tendo em vista que, ao jovem Candido, autores como Vieira e Fusco haviam produzido obras de segunda ordem, as quais não teriam resolvido, no âmbito formal, a tensão entre localismo e cosmopolitismo. Não assim com Oswald de Andrade ou Graciliano Ramos, o último estimado por Candido como o maior escritor da segunda fase do modernismo. Na abrangente tentativa de explicação do romanceiro oswaldiano, “Estouro e libertação”, Candido tem nas Memórias sentimentais de João Miramar uma obra-prima e “um dos maiores livros da nossa literatura”, o qual expõe “a burguesia endinheirada [que] roda pelo mundo o seu vazio, as suas convenções, numa esterilidade apavorante” (Candido Reference Candido2011, 19). Vê-se, dessa maneira, como o julgamento, contrário àquele reservado às narrativas de Vieira e Fusco, sustém, entretanto, o mesmo elemento de classe como esteio do crivo crítico.

Em Ficção e confissão, compilação de ensaios sobre a obra de Graciliano Ramos, buscará apreender a força coesiva de São Bernardo (1934) a partir da representação do mundo arrimada na figura do proprietário: “Os personagens e as coisas surgem nele [no romance] como meras modalidades do narrador, Paulo Honório, ante cuja personalidade dominadora se amesquinham, frágeis e distantes. Mas Paulo Honório, por sua vez, é modalidade de uma força que o transcende e em função da qual vive: o sentimento de propriedade” (Candido Reference Candido2012a, 32).

O “sentimento de propriedade”, do qual a personagem principal adquirirá consciência em determinada altura da narrativa, sela o ponto de vista que despe tudo o mais (empregados, amizades, o amor de Madalena) de suas qualidades humanas. A julgar São Bernardo a obra mais apurada do autor alagoano, Candido estabelecerá a reprodução deste “sentimento” como seu trunfo, o que se iniciaria na linguagem, incisiva e seca. Trata-se aqui de um mestre do ofício, cujo ponto de vista artístico é arrebatado por Candido em articulação e em contradição com a vida espiritual de sua classe, perpassados ambos pelos motes comuns à sociedade burguesa, como a dominação, o sentimento de propriedade, a banalidade da existência votada ao acúmulo material.

Convém notar que tal expediente crítico do jovem Candido possuía “o propósito de suplantar a crítica impressionista” (Pontes Reference Pontes2009, 66), estabelecendo uma abordagem conceitual que inserisse o escritor no “complexo de idéias que caracterizam o momento social” (Candido Reference Candido1941a, 108), em suma, “crítica que se nega a ver no autor uma entidade independente” (108), mas que reconhece o momento social como força de “certas constantes psíquicas” (112). Deveria chamar atenção igualmente o fato de que, após a divulgação dessa carta programática no número inaugural de Clima (maio de 1941), Candido tenha se dedicado na edição seguinte (julho de 1941) a uma discussão sobre a noção de “método sociológico”, a propósito do recém-lançado livro de Almir de Andrade: Formação da Sociologia Brasileira.

Pese o julgamento de que o melhor do livro esteja numa interpretação da psicologia e da cultura indígenas—a “brandura do índio” (Candido Reference Candido1941b, 84)—, o artigo representa um acerto de contas entre a primeira geração de cientistas sociais formada pela USP e a geração precedente, na qual o resenhista não hesita em apontar os sofismas, as lacunas de argumentação, a falta de rigor, enfim, o amadorismo. Entre o primeiro e o segundo exemplares de Clima, o que o jovem Candido coloca em evidência é o vínculo entre literatura e estudos sociais, algo que se consolidava no subcontinente desde a década de 1930 (Rama Reference Rama1976, 12). O atributo dessa nova perspectiva residia em facultar “conexiones entre precisos y determinados sectores de esa sociedad […] y también precisos y determinados estilos o movimientos artísticos que operan de manera particular y restricta dentro del conglomerado social” (Rama Reference Rama1976, 13–14). Ocioso dizer que, para tanto, concorreram também a criação e a expansão, na mesma época, dos cursos superiores de Sociologia e Antropologia em muitas das universidades latino-americanas.

No caso brasileiro, recorde-se que a abordagem teórica ancorada na psicologia social fora a tônica do pensamento crítico sobre o país desde a década de 1920, lado a lado com as revoluções estéticas das vanguardas artísticas. É em tensão com tais correntes de interpretação via psicologia social que se formarão, nos anos 1950, jovens professores da USP os quais, simultaneamente à escrita das teses de doutoramento, encabeçavam um grupo de estudos multidisciplinar sobre O Capital (Schwarz Reference Schwarz2014, 104). Antonio Candido, representante de uma geração que precedeu a de Roberto Schwarz (integrante daquele grupo), porém posterior àquela dos modernistas da São Paulo provincial dos anos 1920, deitará no jogo da psicologia social as primeiras cartas que depois abandonará.

Em 1988, por ocasião do cinquentenário do lançamento de Vidas Secas, Candido se dirigirá novamente a Almir de Andrade com um comentário que era, indiretamente, a reavaliação do antigo método: “E aqui temos um exemplo da crítica mais conservadora, inclusive porque ligada às formas habituais de análise psicológica na ficção” (Candido Reference Candido2012a, 147). Mais tarde, em 1992, retomando os ensaios de crítico neófito, Candido não se esquivará de apreciação mais rigorosa, comentando que “Ficção e Confissão envelheceu visivelmente” e que a inatualidade da composição, elaborada quase meio século antes, estaria “no realce dado ao ângulo psicológico (de psicologia literária, é claro), ponto de apoio para captar a visão do homem na obra de Graciliano, que era o meu alvo” (Candido Reference Candido2012a, 14).

Esta opção pela visão de mundo consolidada na obra de arte é o elemento que, aparentemente, levará Candido a propor, na década de 1940, um esboço de teoria da formação muito semelhante àquela do Ángel Rama dos anos 1970, ao menos no que concerne à simpatia do escritor por temas e formas da cultura popular. Com efeito, a confiar nas anotações desses anos, o jovem Candido acreditava testemunhar o esforço final pela formação da literatura nacional, o qual se daria em paralelo às criações da América hispânica, de maneira geral também voltadas, a partir de 1930, à “descoberta do povo”, na esteira da radicalização política dos escritores (movimento descrito, muitos anos depois, pelo próprio Candido em “Literatura e subdesenvolvimento”Footnote 3 ).

Reconhecendo já a estatura sem paralelo de Machado de Assis,Footnote 4 Candido parece ainda não discernir no Bruxo do Cosme Velho a culminância do processo formativo das letras brasileiras: “Talvez se possa dizer que os romancistas da geração dos anos de 1930, de certo modo, inauguraram o romance brasileiro, porque tentaram resolver a grande contradição que caracteriza a nossa cultura, a saber, a oposição entre as estruturas civilizadas do litoral e as camadas humanas que povoam o interior” (Candido Reference Candido2011, 41–42, itálico meu).

Note-se que à inauguração do romance como gênero literário no Brasil corresponderia a resolução, no âmbito formal da obra, da cisão social constitutiva do país, descrita como a polarização entre populações cosmopolitas e abastadas do litoral e aquelas da chamada hinterlândia, legatárias não só de uma economia tida como “primária”, senão também relegadas a outro tempo histórico, marcado por modalidades “arcaicas” de socialização. “Hinterlândia” (hinterland), convém lembrar, era termo corrente nos relatos de cientistas, viajantes e aventureiros da época, os quais, embrenhando-se por estados não-litorâneos, avançavam sobre terras semidesconhecidas, objeto ainda de exploração militar e estatal, no caso da Comissão Rondon (1907–1915) e depois da Fundação Brasil Central (1937–1945).

Esta polarização geográfica entre litoral e interior—à qual recorria o sociólogo e crítico literário Candido para conceber a formação da literatura nos anos 1940—constituía então um topos do imaginário e do estudo sobre a formação do próprio Brasil, fato reforçado pelo prestígio e pela longevidade do termo “sertão”, que entre 1870 e 1940 “chegou a constituir categoria absolutamente essencial (mesmo quando rejeitada) em todas as construções historiográficas que tinham como tema básico a nação brasileira” (Amado Reference Amado1995, 146). Lançado na mesma década, Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., à sua maneira também encarava o tema da inorganicidade territorial e social do país, remetido ao momento da independência. A primeira parte do livro—intitulada “Povoamento”—funda-se em distinção estrutural entre o mesmo litoral e o interior, ambos varados por longas extensões (nas palavras de Prado Jr.) de “deserto” ou “vazias”, as quais cabia ao português “civilizar”, mas que teriam, por longos períodos, condenado as cidades “a uma vida local e vegetativa” (Prado Reference Prado2011, 50).

Nessa época, Candido parece acreditar que tal dualidade social não deverá subsistir longo tempo, pois certa tendência histórica integraria a massa desprivilegiada ao setor mais moderno do país. Tal juízo vai ao encontro da percepção, também crescente no período varguista, de desenvolvimento nacional acelerado. Enquanto a integração entre as dimensões moderna e arcaica do Brasil não ocorresse, diz o jovem Candido, tornar-se-ia impossível falar de algo como a “civilização brasileira”.

Acreditando resenhar o estágio final de maturação do romance brasileiro à luz da cisão entranhada na sociedade, revelava-se aqui o raciocínio da autonomia relativa da obra de arte, a qual teria facultado à literatura se formar a despeito de e contra a inorganicidade de país periférico. Eis porque, pese a transformação sofrida pelo conceito de forma literária, falou-se linhas acima de concepções já latentes nos anos 1940, as quais, diversamente daquele, apenas se fortaleceriam no pensamento do Candido da Formação da literatura brasileira (1959) e da “Dialética da malandragem” (1970):

Ora, precedendo a obra dos políticos, dos economistas, dos educadores, a literatura [de 1930–1940], a seu modo, colocou primeiro e encaminhou em seguida a solução do problema. […] O movimento de reivindicação e a onda surda da tomada de consciência de uma classe ecoaram de certo modo no domínio estético, e a massa começou a ser tomada como fator de arte […]. Até aí o romance fora feito em vista da satisfação da burguesia litorânea, mais ou menos europeizada. A partir daí, vamos ver um fenômeno diferente: em grande parte os escritores procuram se desburguesar. (Candido Reference Candido2011, 41–42)

O “desburguesamento” assinalava a solidariedade do escritor pela parcela mais oprimida da população desde o período colonial. Trata-se de relação direta, de engajamento ideológico assumido conscientemente ante as tribulações dos desfavorecidos, cuja implicação última seria a desalienação geral: primeiro a do artista e, em seguida, a do povo. Digamos, portanto, que no jovem Candido o conceito de forma está sujeito à integração, na economia da obra, dos polos socioculturais do país mantidos, até então, como universos remotos, por meio de um movimento voluntário do artista, o qual não excluiria certo sentido de traição de classe. “O romance começa, pois, a não ser mais romance para classe. É ainda de classe, porque os seus autores não podem se desprender da sua, burguesa” (Candido Reference Candido2011, 43).

De fato, não fosse o contexto brasileiro tão presente na constituição de sua teoria, poder-se-ia pensar nas próximas palavras—escritas na primeira metade da década de 1940—como antecipadoras do conceito de transculturação no sentido introduzido na literatura por Rama: “A força do romance moderno foi ter entrevisto na massa, não o assunto, mas a realidade criadora. Através dos livros, toda essa massa anônima criou, de certo modo, transfundindo o seu vigor e a sua poesia na literatura europeizada da burguesia. Foi uma espécie de tomada de consciência da massa através da simpatia criadora dos artistas que se dirigiram a ela” (Candido Reference Candido2011, 43–44).

A mudança de estatuto da “massa”—que de “assunto” se torna “realidade criadora”—significava para o romance a superação do realismo de cariz regionalista, cujas representações redutoras e cujos expedientes linguísticos deixavam entrever o isolamento das belles lettres ante o mundo “inculto” que as circundava. A “simpatia criadora” dos artistas modernos era partilhada pelo próprio crítico, razão pela qual defenderá a arte “popular” de Érico Veríssimo contra a ortodoxia de uma elite nacional devedora da voga europeia, e composta por senhores dispostos a “se estatelarem ante ela!” (Candido Reference Candido2011, 63).

Daí também, possivelmente, a ausência de menção à relevância formativa de Machado de Assis, no sentido em que despontará, anos mais tarde, na Formação. Em sua fase realista, como se sabe, Machado encaminhara os constrangimentos da forma romanesca na periferia sem se imiscuir de modo direto numa perspectiva popular “das camadas humanas que povoam o interior”; ao contrário, terminara por acolher ironicamente o ponto de vista “das estruturas civilizadas do litoral”, solução estética que o tornava, paradoxalmente, hors concours mas também en dehors do esquema do jovem Candido (o qual, como estamos vendo, distinguia no modernismo a culminância do processo de constituição do romance brasileiro).

Tais características predicadas por Candido, na primeira metade de 1940, à constituição de uma prosa madura no Brasil serão, grosso modo, aquelas defendidas por Rama à literatura transcultural. Convém mencionar que, neste caso, o uruguaio não formaliza o objeto de suas investigações como de caráter “psicológico”, mas exprime seus interesses pelas “cosmovisões” dos autores e pelo arcabouço ideológico das classes sociais às quais se vinculam direta ou indiretamente. Rama acreditava fundamental que o artista—a fim de extrapolar a particularidade de um regime de escritura condicionado pela classe social—fosse capaz de formular uma concepção de mundo, ou, nos seus termos, “cosmovisões” (Rama Reference Rama1987, 31): postura que sublinha, tal como no jovem Candido, a filiação da obra à perspectiva popular desembaraçada dos liames ideológicos da elite.

Quando, em 1972, o uruguaio ministra o curso sobre a prosa de Gabriel García Márquez, subintitula-o significativamente “edificação de uma arte nacional e popular”. O curso previa tratar a formação da literatura segundo a novelística do colombiano, “lo cual indica usar un tanto a García Márquez como ejemplo para la demostración de una teoría literaria” (Rama Reference Rama1987, 7). A formação como momento integrativo latino-americano não excluiria a arte nacional, antes a pressupondo, desde que os escritores soubessem interpretar os “sentimentos populares” vividos por eles próprios e que exerceriam, além de uma dimensão estética, uma “função educativa nacional”Footnote 5 (Rama Reference Rama1987, 9–10). As palavras que Coronel (Reference Coronel2009, 177) dedica à arte de Alejo Carpentier são precisas para caracterizar o projeto de Rama: tratava-se da exaltação da vitalidade das fontes populares da cultura e do folclore para a modelação de uma arte americana, além da assunção do desafio de aceder ao universal por meio do nacional.

No ensaio “Sistema literario y sistema social en Hispanoamérica”, de 1975, Rama expõe com mais vagar o processo estético-social ao qual atribui o surgimento de uma literatura transcultural, amparada na coexistência, nos territórios nacionais latino-americanos, daquilo que nomeia “sequências literárias”:

Estas secuencias pueden asociarse a los estilos o las corrientes estéticas […], pero de ellos pueden distinguirse, no solo por los recursos artísticos específicos que ponen en juego sino por la unidad que les otorga el manejo del ‘imaginario social’ del cual son partícipes sus integrantes, y que se revela en las oposiciones internas al período. Las secuencias conviven con otras que les son heterogéneas y es esta superposición de estratos artísticos la que confiere espesor a cualquier época histórica y nos permite avizorarla como una representación de la normal estratificación social. (Rama Reference Rama2006, 104)

As “sequências literárias” fornecem dimensão estrutural ao conceito de transculturação de Rama, ao mesmo tempo em que este se articula às contribuições teóricas de Candido, no caso, à tensão constante entre localismo e cosmopolitismo, como presente na Formação. O cotejo dessa proposição teórica com a dinâmica da sociedade mexicana do período colonial é instrutivo, visto que os pontos de contato entre camadas sociais se sobrepunham por vezes aos espaços de segregação na cidade. Daí que Romero (Reference Romero2001, 107), referindo-se à dinâmica social da colônia espanhola, corrobore a proposição do uruguaio ao afirmar que “la aparición de un barroco mestizo preanunció cierta crisis de la sociedad barroca (hidalga): una clase alta hispánica que tolera una virgen morena está anunciando que ha asimilado algunos elementos de las culturas vernáculas”. Está em jogo a autonomia e a interrelação entre esferas sociais e simbólicas que compõem a espessura cultural de uma sociedade, enquanto ensejam formas originais de expressão artística.

Assim “el modernismo convive con el desarrollo del criollismo […]. Hay también una relación (aproximación o rechazo) entre los diversos estratos” (Rama Reference Rama2006, 104). Na densa introdução que escreve a Los Gauchipolíticos Rioplatenses, Rama se refere ainda a “estratificaciones colindantes”, formas literárias produzidas no bojo de sequências cultas ou populares, mas que revelam divisões nos seus padrões gerais. Menciona assim a produção concomitante de um realismo despretensioso por Manuel Antonio de Almeida (seu romance Memórias de um sargento de milícias) e o romantismo de tom elevado praticado por José de Alencar: originários de distintos estratos sociais, ambos seriam exemplos de alto nível artístico num “conjunto mucho más vasto” (Rama Reference Rama1976, 27) de obras e escritores.

A descrição de Rama das “sequências literárias” visava contrapor-se a métodos de análise que o uruguaio julgava redutores, porque importados da historiografia e da crítica literárias europeias. A admissão, sob o rótulo de “literatura”, unicamente de obras escritas com o registro culto, bem como sua articulação “evolutiva e gradual”, tais princípios teriam, segundo ele, conduzido a uma percepção da literatura latino-americana como linear, progressiva e, consequentemente, sem espessura. Contempladas por tais lentes, as tendências e expressões que não se adequassem aos critérios trazidos d’além mar eram simplesmente ignoradas ou relegadas a variação mais ou menos conseguida do modelo europeu. Eis que, à primeira vista, aquilo que “parecia haver sido um progresso da crítica literária, isto é, a intenção de colocar a literatura do continente como sendo paralela à europeia, acabava por gerar uma distorção da cultura literária da região” (Cunha Reference Cunha2007, 321).

Como mencionado, uma inflexão no pensamento de Rama teria se dado, segundo Rocca (Reference Rocca2006, 10) e Ruffinelli (Reference Ruffinelli1994, 121–122), na transição da década de 1950 para 1960, quando um paradigma mais formalista dos estudos literários—herdeiro da filologia e da estilística—teria cedido espaço à leitura mais atada às dinâmicas sociais da arte. A transição de paradigmas teóricos proporcionava uma revisão crítica do fluxo de apropriação de modelos e critérios estrangeiros, a partir de então submetidos à difusão de certa corrente do pensamento alemão que vai de Hegel a Lukács, passando pelo estudo do marxismo, e da qual se valeram tanto Rama quanto Candido. Somado a isso, o advento da Revolução Cubana reforçava os engajamentos políticos da atividade intelectual, além de amplificar a ideia de América Latina como “pátria grande”, com desdobramentos sobre o conceito de transculturação, empregado posteriormente por Rama à literatura em âmbito supranacional.

De acordo com Cunha (Reference Cunha2007, 321), ademais de encontradas em qualquer período histórico, as sequências literárias “dificilmente seriam identificadas em número menor do que quatro estratificações e […] conforme se teria avançado no tempo, maior teria sido a complexidade delas”. Emparelhadas com o empenho estilístico sobre a língua e com o imaginário social (receptáculo da história, dos mitos e símbolos de uma sociedade), as sequências literárias “recordam os três níveis da transculturação narrativa expostos por Rama em Transculturación narrativa en América Latina—a língua, a estrutura narrativa e a cosmovisão[—]” (Cunha Reference Cunha2007, 321). Eis, em suma, os elementos principais que compõem o conceito de forma no pensamento do Rama maduro.

A formação, portanto, teria proporcionado uma gama de obras que se insere na verve popular de reinvenção da linguagem culta, enquanto funda a narrativa sobre uma cosmovisão desaburguesada. Esta cisão, na medida em que rompe com as arbitrárias (porque estabelecidas pela burguesia) fronteiras nacionais, teria como consequência o adensamento do espaço cultural latino-americano. Rama (Reference Rama1987, 79) menciona os motes narrativos que se repetem na estrutura de Cien años de soledad e que emulam, no fundo, os estribilhos recorrentes das poesias de caráter oral. Portanto, o escritor da transculturação apreenderia, num espaço intersticial, as lições de sequências literárias distintas, às vezes contrárias—pense-se na tendência dissolvente das vanguardas europeias e no espírito conservativo das literaturas orais—, para inaugurar a forma madura do romance no subcontinente hispano-americano.

No que diz respeito a outra narrativa transcultural tão estimada por Rama como Los ríos profundos, do peruano José María Arguedas, o uruguaio jamais ignora elementos de cariz ideológico entremeados pelos fundamentos individuais ou sociais do artista. Exemplo do primeiro tipo, mais pessoal, vê-se na constatação de que “em Arguedas […] conserva-se uma chama cristã, muito mais poderosa que as outras agitações políticas ou sociais da época” (Rama Reference Rama2008, 324). Por seu turno, certa dimensão mítica, sobre a qual se estruturaria o romance, “pode se filiar, ainda que por vezes também dissociar-se, do próprio autor e sempre revela conexões com o pensamento de grupos sociais da época” (328). Ao debruçar-se sobre a forma literária de Los ríos profundos, Rama valorizará a capacidade do escritor e antropólogo de reconhecer a energia das “cosmovisões que a racionalidade dominante nos grupos ideológicos e políticos da época desdenhava” (338), bem como sua maneira de incorporar o “comportamento ideológico de muitos estratos populares” (339), no qual a teoria socialista teria se mesclado “a uma concepção mágica do universo” (339).

Destarte, preservando o crivo crítico do jovem Candido—a psicologia literária/cosmovisão informada pelas contradições de uma classe social—, e unindo a essa problemática as questões de linguagem e estrutura (variáveis conforme seu desenvolvimento no interior das “sequências literárias”), Ángel Rama estabelece o êxito estético como efeito do itinerário ideológico do escritor, como “una operación voluntaria y racionalizada” (Rama Reference Rama1976, 44), em suma, uma conquista da consciência artística.

Projeto intelectual e forma literária

Concluído o período de experimentações vanguardistas (o que, no Brasil, chama-se “modernismo”) e estabelecidos como intelectuais proeminentes em seus respectivos países,Footnote 6 Ángel Rama e Antonio Candido desenvolverão, ao longo dos anos 1960–1970, suas concepções definitivas da forma literária. No caso de Rama, o período abrange não apenas o curso sobre a novelística de García Márquez, senão também a elaboração de Transculturación narrativa en América Latina (1982), remate de suas noções estéticasFootnote 7 .

Na mesma época, Candido escreveria dois ensaios capitais, “Dialética da malandragem” (1970) e “De cortiço a cortiço” (cujas primeiras versões, sob títulos diferentes, foram publicadas em 1974 e 1976), dando vazão àquilo que Schwarz (Reference Schwarz1987, 129) definiu—referindo-se à análise das Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida—como “o primeiro estudo literário propriamente dialético” no Brasil.

Nas abordagens dedicadas ao diálogo entre os dois críticos, a ênfase comumente recai na apropriação e ressignificação que Rama realizaria de conceitos como os de “sistema literário” e “formação” para o caso da literatura na América Latina. Em menor grau, tem-se debatido em que medida o uruguaio encoraja o colega brasileiro a teorizar a literatura sob a égide da cultura latino-americana, esforço cujo desfecho mais conhecido talvez seja “Literatura e Subdesenvolvimento”, texto publicado por Candido em 1971. As duas aproximações, contudo, com frequência descuidam que Candido e Rama não partilham do mesmo entendimento desses conceitos, mobilizados para a apreensão de objetos distintos (literatura brasileira/literatura latino-americana) e devedores do sentido proemial de forma.Footnote 8

Pese o fato de que o maduro Rama (1970) e o jovem Candido (1940) vinculam a perspectiva de mundo do autor à narrativa, Rama explora com afinco (mesmo porque se trata de sua concepção final) a maneira pela qual esse procedimento ensejaria a forma literária, emparelhando transculturação e formação. Em Brigada Ligeira (1945), bem como nos textos sobre a prosa de Graciliano Ramos (reunidos em Ficção e confissão e publicados em 1956), Candido demonstra preocupação similar, embora menos sistematizada. É significativo o fato de que os ensaios escritos na década de 1950, depois publicados sob o título de Tese e antítese (1964), ainda abordem “problemas de divisão ou alteração, seja na personalidade do escritor, seja o universo de sua obra” (Candido Reference Candido2012b, 9). Está-se ainda, em certo sentido, na exploração de uma psicologia, seja a do criador, seja a da criatura. Contudo, o itinerário subsequente de Literatura e sociedade (1965)—no qual vêm à luz as sistematizações teóricas do Candido maduro—denuncia as mudanças pelas quais suas concepções prévias passavam.

A compreensão derradeira da forma literária por Antonio Candido emerge com “Dialética da malandragem” (1970) e rompe por completo com a noção de psicologia do narrador ou com a perspectiva de mundo consolidada na narrativa, as quais, como vimos, vinculavam-se às estruturas de valor de uma classe social específica. É por este ensaio que o Candido maduro, no que tange o conceito de forma, afasta-se definitivamente tanto do jovem Candido quanto do Ángel Rama da transculturação.

Convém notar que o uruguaio toma conhecimento da “Dialética” somente em setembro de 1976 e, ao comentar o ensaio, aparentemente não se dá conta do rompimento teórico e metodológico ali cifrado.Footnote 9 Pese seu estatuto como contribuição original à crítica literária, “Dialética da malandragem” recobra, na condição de ensaio interpretativo do país, certa tradição modernista dos anos 1920, no sentido de que acolhe os elementos vitais próprios dos estratos populares (leia-se: o antidogmatismo linguístico, a falta aos códigos socialmente aceitos, o desvio ante as doutrinas religiosas cristãs) realocando-os sob nova luz: esta ressalta como tais elementos favoreceriam a inserção brasileira num mundo menos batido pelas forças centrífugas do capitalismo, enquanto desvencilha a compreensão da forma como expressão de uma psicologia do autor, alimentada pelas contradições da classe burguesa. Em outras palavras, é possível (como afirma Candido na “Dialética”) que o Brasil seja “uma terra sem males definitivos”, porém a convicção do escritor a esse respeito seria irrelevante quando se trata do triunfo estético da obra. À manutenção de suas convicções políticas (o antielitismo de juventude) segue-se uma superação das primeiras elaborações teóricas (a psicologia literária). Ou seja, um movimento de conservação e transformação—fenômeno tantas vezes investigado por Candido—opera agora uma renovação no pensamento estético do próprio crítico.

No Candido maduro, o conceito de forma não se vinculará à perspectiva do escritor (como na sua juventude), mas ao estabelecimento de uma relação mediada entre estrutura literária e estrutura social, sob o influxo dos modelos estéticos europeus. “No decênio de 1940 […] Candido voltou-se prioritariamente para a análise dos condicionantes que presidem a criação das obras literárias. […] A partir do início da década de 60, seu desafio será o de revelar, através de análises circunstanciadas, a maneira pela qual os elementos externos à obra literária se reconfiguram em elementos internos, estruturantes do próprio sistema literário” (Pontes Reference Pontes2009, 67).

Esta forma literária se revela, no ato crítico, como redução estrutural, criação analítica de Candido que visava, salvo engano, discernir o caráter particular da cindida realidade social que informa a obra de arte na periferia do capitalismo. A redução estrutural estabelece uma ponte entre a economia da obra e “o complexo heterogêneo de relações histórico-sociais que constitui a realidade” (Cevasco Reference Cevasco2016, 252)—a maneira pela qual o mundo exterior se torna um dado interiorizado da narrativa, é dizer, pela qual o social se torna o estético—. Tal conceito de forma compreenderia um âmbito inconsciente da narrativa, expressão do aspecto social e que se faria “às costas” da consciência do escritor.Footnote 10 Em outras palavras, residiria aí certa dimensão de negatividade, uma vez que a forma exprime aspectos do universo social à revelia das convicções e valores do artista, o que equivale, por sua vez, a suprimir a cosmovisão popular como crivo crítico.

Em sentido contrário, o conceito de forma no pensamento estético de Ángel Rama resguardaria sua dimensão de positividade, conservando-se diretamente vinculado à visão autoral que, como exposto, na transculturação se coaduna deliberadamente com a cosmogonia popular. Tal compreensão da forma possui duas implicações principais. A primeira é a exclusão, por razões diversas, de nomes como o de Jorge Luis Borges e o de Alejo Carpentier, pilares da ficção moderna hispano-americana e relegados à condição de precursores da literatura da transculturação. A segunda diz respeito à inclusão, no rol da transculturação, de obras com técnicas narrativas muito distintas, como são as de Arguedas, Rulfo e Guimarães Rosa. Assim, um romance de fatura estritamente realista, como Los ríos profundos (1958), de Arguedas, teria sentido estético equivalente àquele da novela Pedro Páramo (1955), de Rulfo, na qual o estatuto dúbio da realidade e a elisão causal assumem o primeiro plano.

Por fim, no que tange a tarefa epistemológica de distinção que o conceito realiza, seria conveniente recordar nesse ponto a antiga lição da primazia do objeto, o qual não pode ser apreendido pelo conceito sem modificá-lo: caso fosse preciso escrutinar tais contrastes, ver-se-ia que a concepção da forma, no pensamento maduro de Rama, subjaz às demandas de seu projeto intelectual, direcionado à interpretação e à valoração do processo de formação literária na América Latina.

Por dizer respeito à vastidão geopolítica do subcontinente latino-americano—e pautando-se pela existência das comarcas culturais que sobrepassam as fronteiras delimitadas pelos territórios nacionais—a forma literária em Rama não responde (nem poderia responder) à expressão de uma estrutura social específica (como ocorre na teorização madura de Candido, centrada no caso nacional brasileiro), visto que tal estrutura está atada às injunções socioeconômicas dos Estados modernos. A forma transculturada seria, portanto, consequência lógica de um projeto intelectual supranacional, que encara a América Latina como unidade com desenvolvimento(s) e sentido(s) próprio(s).

Caberia perguntar, portanto, como o entendimento da forma, auferido das concepções maduras de Candido, poderia contribuir à apreensão do fenômeno artístico como processo que excede esse mesmo Estado, o qual, na primeira metade do século XXI, sugere sua contingência ante as forças desterritorializantes do capitalismo mundializado. Nesse ponto, o diagnóstico de Schwarz (Reference Schwarz2014, 194–195) em Sequências brasileiras—o juízo de que, com o salto tecnológico dado pela microeletrônica a partir da década de 1970, o processo social já não seria mais nacional—parece encontrar, contra-intuitivamente, um aporte sugestivo na concepção supranacional de Ángel Rama. Se a chamada Quarta Revolução Industrial condenou de fato ao caráter de pia ilusão o que, por longo tempo, fora tido como horizonte palpável—a formação ou integração nacional nos termos de uma política nacional—, a investigação dos processos sociais e fenômenos culturais que o excedem passa ao plano da necessidade e impõe-se como território de reflexão.

Footnotes

1 José Batlle y Ordóñez (1856–1929) foi presidente do Uruguai, pelo Partido Colorado, entre os anos 1903–1907 e 1911–1915.

2 Ángel Rama esteve à frente do suplemento cultural de Marcha nos anos de 1949 e 1950 e, depois, entre 1959 e 1968, ambos sucedendo a Emir Rodriguez Monegal.

3 Ángel Rama, em carta de 8 de novembro de 1973, escreve a Candido exprimindo sua total concordância com os pontos de vista expostos pelo brasileiro nesse ensaio: “Causa-me certo espanto comprovar como caminhamos por trilhas paralelas, que, penso, se devem a perspectivas críticas similares. Inteiramente de acordo com a tese que conduz você progressivamente da mudança, por volta dos anos 30, do país novo ao país subdesenvolvido e a uma avaliação que resgata o regionalismo em uma perspectiva que você chama de super-regionalismo. É isso mesmo o que lhe propunha, sob o título de os transculturadores da narrativa” (Candido e Rama 2018).

4 Mais ou menos na mesma época (década de 1940), afirma: “Com a exceção do maior de todos, Machado de Assis, os nossos grandes contistas não têm sido ao mesmo tempo grandes romancistas, embora um ou outro tenha escrito bons romances” (Candido Reference Candido2012a, 60–61).

5 Ambos os termos, referentes à literatura italiana, são de Gramsci, adotados por Rama para o caso latino-americano.

6 Para o caso de Antonio Candido, Pontes (Reference Pontes2009, 67) sublinha: “Tendo desfeitas a tensão e as ambivalências de sua situação institucional—assistente da Cadeira de Sociologia II da Faculdade de Filosofia (entre 1942 e 1958) e produtor de conhecimentos na área de literatura desde 1941”.

7 Note-se que todos os textos que compõem Transculturación foram elaborados neste período, entre os anos 1970 e começo dos anos 1980. Como se sabe, Rama faleceria tragicamente em 1983, aos cinquenta e sete anos.

8 Neste ponto, valeria mencionar, este ensaio se afasta da introdução crítica intitulada “Para além de Tordesilhas”, presente na conhecida antologia Ángel Rama: Literatura e cultura na América Latina (2001), organizada por Flávio Aguiar e Sandra Vasconcelos. Segundo entendo, ao depositar ênfase na continuidade entre os trabalhos teóricos de Rama e de Candido (sublinhando a fecundidade do conceito de “sistema literário” e do sentido formativo da tensão entre “universalidade e particularidade”, elaborados pelo brasileiro e desenvolvidos pelo uruguaio), o texto menoscaba a dimensão de ruptura desse diálogo. Tal ruptura, como desejo mostrar, deve-se mormente às especificidades dos projetos intelectuais de cada um dos críticos, bem como à coerência epistemológica (conceituação e metodologia) que conduziu Candido e Rama a estabelecerem teorias que respondiam, internamente, a esses projetos.

9 Embora elogiosas, as palavras que Rama dedica ao ensaio são econômicas e estão inseridas no contexto do diálogo epistolar entre Candido e o uruguaio relativo aos trabalhos da Biblioteca Ayacucho: “A Administração lhe enviou ontem o cheque correspondente pelo prólogo ao Manuel Antônio de Almeida. Agora tive tempo de lê-lo: é realmente esplêndido e teria gostado de tê-lo quando escrevi um ensaiozinho sobre literatura e classe social que aparecerá no primeiro número da revista Escritura” (Candido y Rama 2018, 122).

10 Roberto Schwarz coloca do seguinte modo este ponto: “Os dois ensaios centrais de Antonio Candido, sobre o Sargento de milícias e O cortiço, sendo rigorosamente apoiados na análise das obras, descobrem a força e relevância delas num plano que não teria ocorrido aos respectivos autores. Dizendo de outra maneira: segundo esse modo de ver, o trabalho de configuração artística tem uma disciplina própria, que lhe permite superar as convicções, as teorias e os horizontes do autor” (Schwarz Reference Schwarz2012, 291).

References

Referências

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